De segunda a sexta-feira, a paulista Megume Uehara trabalha como operária em uma fábrica em Hamamatsu, na província de Shizuoka, a cidade com a maior concentração de imigrantes brasileiros no Japão. Nos fins de semana, a jovem de 28 anos viaja a Aichi, a província vizinha, para “pregar a palavra”. Megume é missionária da igreja cristã Sola Japan, que integra desde 2014.
A primeira missão foi em Kikugawa (Shizuoka), em 2016. “Hamamatsu já tinha sido bastante evangelizada e, na época, ficávamos debaixo de chuva ou de sol de 40 graus, mas as portas não se abriam mais, os outros não paravam para nos ouvir nas ruas ou nas suas casas. Oramos a Deus para pedir uma cidade nova para evangelizar. E descobrimos Kikugawa”, lembra.
Megume e outros missionários viajavam para a cidade às noites de sexta-feira para bater às portas das casas de brasileiros e convidá-los a participar da igreja. Ao longo dos sábados, eles organizavam “células”, pequenas unidades para estudar a Bíblia. Nas manhãs de domingo, realizavam cultos. “A igreja de Kikugawa se estruturou e reuniu muitos discípulos. Foi a hora para nós, missionários, partimos para outra cidade”, diz.
“Missionários não ficam pulando de galho em galho. Temos nossa casa e nosso pastor, mas estamos sempre prontos para sair da nossa geografia e ajudar na construção de novas igrejas”, define Megume que, entre idas e vindas do Brasil, já conta 20 anos no Japão. A missão atual é em Okazaki (Aichi), que hoje reúne cerca de 50 fiéis — entre eles, 5 japoneses.
Igrejas como a Sola Japan se dedicam à evangelização de imigrantes e dekasseguis (descendentes de japoneses que migram para trabalhar temporariamente no país), mas almejam atingir japoneses no futuro.
Missionários não ficam pulando de galho em galho. Temos nossa casa e nosso pastor, mas estamos sempre prontos para sair da nossa geografia e ajudar na construção de novas igrejas”, define Megume
“Nosso foco é o Japão, mas é impossível ganhar os japoneses se não tivermos um exército forte. Nós precisamos de aliados, como diz a Bíblia. E os aliados são os jovens brasileiros, que já dominam a língua japonesa e que, um dia, vão conversar de igual para igual sobre o amor de Jesus com os japoneses”, aposta.
Igrejas cristãs tiveram um boom silencioso nas últimas décadas no Japão, um arquipélago historicamente budista e xintoísta — as duas religiões abrangem mais de 90% da população. Proibido entre 1614 e 1873, o cristianismo conta com cerca de 1,9 milhões de fiéis hoje, o que representa apenas 1,1% da população do país.
Segundo o Shukyo Nenkan de 2019, o relatório religioso anual da Agência de Assuntos Culturais do país, há 84 mil organizações xintoístas (46,9%), 77 mil budistas (42,6%) e 4,7 mil cristãs (2,6%) ativas. Também há 14 mil organizações de outras religiões (7,9%), não identificadas nominalmente. Tampouco há distinções entre igrejas cristãs católicas e evangélicas.
Boom
Oficialmente, o número de instituições cristãs não teve alteração expressiva — em 2009, eram 4,3 mil organizações ativas (2,4% do total), uma diferença de 400 unidades diante de 2019. Extraoficialmente, entretanto, o movimento migratório dos dekasseguis impulsionou um fenômeno de novas igrejas evangélicas brasileiras, fora do radar das estatísticas japonesas.
Em 1997, estimava-se 75 grupos evangélicos brasileiros no Japão, segundo dados da Igreja Metodista Livre citados em artigos acadêmicos. Em 2002, eram 200. Em 2007, eram 441, de acordo com a revista evangélica Mensageiro da Paz, sem contar movimentos neopentecostais como a Igreja Universal.
Segundo o sociólogo Masanobu Yamada, professor da Universidade Tenri (Nara), muitas igrejas brasileiras não foram oficialmente registradas como instituições religiosas devido à burocracia japonesa — o cadastro não é obrigatório, mas pode ser necessário para a aquisição de imóveis, por exemplo. Por volta de 2008, estimava-se cerca de 500 novas igrejas evangélicas brasileiras no arquipélago. “Não eram oficialmente reconhecidas, mas os membros as consideravam como tal”, diz o sociólogo, que desde 1996 estuda religiões japonesas no Brasil e religiões de dekasseguis no Japão.
Na década de 1990, os primeiros dekasseguis brasileiros eram majoritariamente católicos não-praticantes.
Instalados no arquipélago, eles não se aproximaram das maiores religiões japonesas (budismo e xintoísmo) por não dominarem o idioma, entre outros motivos. Paulatinamente, porém, eles se converteram a igrejas evangélicas brasileiras que iniciaram missões no país, como Assembleia de Deus e Igreja Universal, o que impulsionou o surgimento de novos pastores e a multiplicação de igrejas independentes.
De acordo com o sociólogo Rafael Shoji, co-organizador do livro Transnational faiths: Latin-Americanimmigrants and their religions in Japan (Routledge, 2014), as igrejas evangélicas estrangeiras se firmaram ao redor das regiões periféricas e bairros brasileiros operários, especialmente os conjuntos residenciais conhecidos como danchi.
“Igrejas pentecostais têm muito mais sucesso no Japão devido a uma oferta otimizada e relativamente grande para o atendimento de demanda de uma religiosidade étnica, na ausência de instituições sociais brasileiras e redes de assistência”, diz Shoji, em estudo publicado na Rever – Revista de Estudos da Religião, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ao valorizar ideais de comunidade e família, as igrejas contribuíram para a construção de uma identidade dos dekasseguis dentro do Japão, fora das fábricas.
O sociólogo investigou a presença de igrejas pentecostais nas províncias de Aichi, Shizuoka, Gifu e Ishikawa, durante temporada de pesquisa na Universidade Nanzan, em Nagoia (Aichi). Entre 2004 e 2008, identificou 313 instituições voltadas a brasileiros: 47% delas evangélicas e neopentecostais, 25,6% de novas religiões japonesas, 20,8% de católicas e as demais budistas, espíritas ou umbandistas. Entre as evangélicas, as mais fortes são Assembleias de Deus (24%), Igreja Universal (10%) e Missão Apoio (10%).
Missão Apoio (acrônimo de Assistência e Preparação de Obreiros Interligados na Obra) é um dos maiores exemplos de expansão do “pentecostalismo dekassegui”. Fundada pelo pastor brasileiro Claudir Machado em 1993, a unidade foi idealizada especialmente para prestar assistência a imigrantes no Japão.
Da fábrica à igreja
Missão Apoio é a casa do paranaense Sergio Akira Kawamoto, 35 anos, desde 2000 radicado no Japão. “Lembro até hoje: desembarquei no dia 3 de agosto; no dia 5 já comecei a trabalhar em uma fábrica, uma jornada diária de 8 horas mais 4 de zangyo [hora extra, em japonês]. Eu tinha 15 anos, tinha deixado amigos, estudo, tudo para trás no Brasil. Era revoltado. Voltava para casa depois do trabalho e chorava de raiva, pensando ‘que vida que eu estou vivendo?'”, conta.
Nas noites de sexta-feira, uma vizinha costumava bater à porta do apartamento de Sergio, convidando-o para participar de reuniões religiosas no prédio deles em Toyohashi (Aichi). Um dia, ele aceitou. “Nunca mais saí. Eu me encontrei. Estudei a Bíblia, fiz cursos, retiros.” Sergio e Keila (a jovem missionária) se casaram e tiveram três filhas tempos depois. Para muitos imigrantes, a igreja se torna a família no Japão.
Núcleos religiosos, diz a antropóloga Regina Yoshie Matsue, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), se tornam o espaço por excelência de socialização dos imigrantes. “É onde eles podem desfrutar da companhia de seus pares, fazer network de apoio social para trocar informações sobre empregos e facilidades, dividir experiências e frustrações do dia a dia na fábrica”, exemplifica. Para Matsue, autora de estudos sobre religiões de dekasseguis, durante o mestrado e o doutorado na Universidade de Tsukuba (Ibaraki), a adesão às religiões é um tipo de resposta na busca por identidade e inquietações psicológicas e sociais dos imigrantes, como os choques culturais entre Brasil e Japão.
Em 2007, o pastor da Missão Apoio de Toyohashi voltou para o Brasil — e Sergio e Keila assumiram como pastores. Status de pastores, obreiros e missionários variam entre as instituições. Sergio se define nos três termos, considerando-se pastor, missionário (por cumprir missões) e obreiro (por dedicar-se à “obra de Deus”).
No início, Sergio conciliava o trabalho na fábrica e na igreja. Depois, passou a se dedicar integralmente à Missão Apoio, onde hoje também é tesoureiro. “Voltava do trabalho pesado de construção de navios e precisava escolher entre jantar ou ir conduzir estudos bíblicos na casa de alguém. Foram meses e anos assim.”
“Mas pastor também é humano. Uma hora muitos pastores precisam desacelerar, talvez diminuir a carga para o teiji [a jornada básica de 8 horas] ou poder contar inteiramente com os dízimos.”
Desde que assumiram a Missão Apoio de Toyohashi, Sergio e Keila estão tentando atrair fiéis novos nipônicos. A ideia surgiu por volta de 2013, quando um jornalista japonês questionou quantos japoneses costumavam frequentar a igreja. Hoje, os cultos das manhãs de domingo, em português, reúnem cerca de 70 participantes; nos cultos da tarde, em japonês, são 20.
Na igreja de Claudemir Fortunato, 52 anos, e Sueli Yoshii Fortunato, 52, o culto é feito em português, com tradução simultânea para o japonês. Integrante da Assembleia de Deus Cristã Água Viva (Adcav), em Suzuka (Mie), Missionário Fortunato, como é conhecido, quer formar novos discípulos, principalmente jovens brasileiros, bolivianos e peruanos. “Quero cumprir minha missão aqui no Japão e voltar ao Brasil. É minha verdade hoje, mas depende de Deus.”
Desde 1998 no Japão, Fortunato começou a atuar como missionário há 8 anos, no templo, nas ruas e de porta em porta. A inspiração, diz, surgiu do Evangelho de Mateus, capítulo 28, versículos de 15 a 20. “Jesus está conversando com os apóstolos e diz: ‘Foi-me dada toda a autoridade nos céus e na terra. Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações’.”
De karaokê a centro cristão
O pastor paulistano Guenji Imayuki, 52 anos, também lembra a frase do Evangelho de Mateus ao justificar suas motivações missionárias. Imayuki trabalhou durante 7 anos com descendentes de japoneses no Brasil.
Depois, foi convocado para trabalhar no Japão. Desde 2015 no arquipélago asiático, ele é missionário overseas (além-mar), uma categoria da Igreja Adventista Do Sétimo Dia (Iasd) que envolve um contrato inicial de cinco anos, prorrogável por mais cinco.
Em 2017 foi inaugurado o Centro Cristão Tokai, em Kakegawa (Shizuoka), em um antigo ponto de entretenimento e karaokê. Ali, Imayuki pretende treinar imigrantes brasileiros para evangelizar japoneses.
“É a expectativa, mas a realidade é mais difícil do que nós imaginamos”, relata. “Toda igreja que tem mais de 30% de imigrantes é difícil, pois dificilmente os nativos vão aderir. Primeiro, precisamos alcançar e treinar os imigrantes brasileiros. Depois, a partir deles, pretendemos alcançar os japoneses.” Nos encontros aos sábados, a unidade de Kakegawa reúne cerca de 80 participantes; entre eles, apenas 2 japoneses.
Com seu primeiro templo no Brasil fundado em 1896, a Igreja Adventista é bastante estruturada e, no Japão, inclui instituições como dez escolas elementares, asilos, cursos de enfermagem e teologia, hospitais em Tóquio, Kobe e Okinawa.
“Nossa filosofia não é só o Evangelho, é o estilo de vida”, comenta.
Igrejas japonesas são vistas como sombrias e sérias, enquanto igrejas internacionais são consideradas mais amigáveis. No treinamento, diz Imayuki, a ideia é enfatizar a assertividade e a expressividade brasileiras, mas equilibrando-as com a cultura japonesa, mais reservada.
Segundo o pastor, há dois focos principais dos adventistas antes de conquistar os japoneses: despertar o interesse de jovens brasileiros e de outros estrangeiros asiáticos presentes no arquipélago, como filipinos, nepaleses e vietnamitas. “É preciso trabalhar a mentalidade desses jovens: eles precisam conhecer a cultura japonesa, mas manter a identidade deles. É difícil professar a fé nesse país. É um longo caminho.”
Fonte : BBC Brasil