Por Ana Azevedo Bezerra Felicio*
Se a igreja evangélica brasileira fosse representada por uma só pessoa, ela seria uma mulher negra. Segundo pesquisa do Datafolha, 58% dos evangélicos são mulheres e 59% dos fiéis são negros. Mas os pastores ainda são majoritariamente homens brancos, e nos púlpitos pouco se ouve falar alguma palavra que resgate a autoestima e o valor feminino.
Será que a Bíblia teria algo a dizer para essas mulheres e para aquelas que mais sofrem discriminação nosso país?
Na Bíblia há uma mulher negra que protagoniza o Cântico dos Cânticos e tem muito a ensinar sobre a vida àqueles que a quiserem ouvir. Ela diz: “sou escura e bonita” (Ct. 1:5). A verdade é que por muito tempo essa passagem foi traduzida como “sou escura, porém bonita” (Ct. 1:5). Sem entrar nos pormenores do texto original em hebraico, a palavrinha que foi traduzida pelas conjunções adversativas “mas” ou “porém” em todas as línguas ocidentais, normalmente é traduzida pela conjunção aditiva “e” em outros contextos.
O que levou as pessoas a optarem pela tradução que contrapõe, por séculos, a beleza à escuridão da pele?
O Cântico dos Cânticos nos força a encarar de frente os filtros culturais que trazemos nos olhos — aqueles mesmos que nos impedem de enxergar o outro em sua inteireza: alguém que, como nós, deseja, sonha, busca ser amado e partilha intimidade. Este livro bíblico coloca uma mulher negra no centro das reflexões sobre quem é digno de ser amado, e sobre a relação entre o poder e o sexo. O Cântico nos ensina que “o outro” é correspondente, é igual a mim.
Tão silenciadas nos púlpitos, mas celebradas nas Escrituras, o rosto mais fiel da igreja evangélica brasileira ainda é o das mulheres negras. Que elas encontrem no Cântico dos Cânticos uma afirmação antirracista de sua dignidade.
*Ana Azevedo Bezerra Felicio é doutora em Linguística pela Unicamp, especialista em Estudos Clássicos e Antropologia Social, além de autora do livro O amor não está à venda.
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