Presidente Jair Bolsonaro é alvo de críticas por católicos. (Foto: Reprodução)
Um grupo de bispos, arcebispos e bispos eméritos do Brasil
assinou uma carta (leia a íntegra mais abaixo) com críticas ao presidente Jair
Bolsonaro (sem partido). O documento, subscrito por 152 religiosos, deveria ter
sido publicado na quarta-feira (22/7), mas foi suspenso para que o conselho
permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) analise o
conteúdo da carta.
A carta foi obtida pela coluna da jornalista Mônica Bergamo,
do jornal Folha de S.Paulo. De acordo com a colunista, os religiosos que
assinam o documento, intitulado de “Carta ao Povo de Deus”, temem que a ala
conservadora da CNBB impeça a divulgação.
No texto, os bispos afirmam que o Brasil atravessa um dos
momentos mais difíceis de sua história, vivendo uma “tempestade perfeita” e
que, apesar de “dolorosa”, precisa ser atravessada. “A causa dessa tempestade é
a combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso
da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República,
provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da
sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança”, diz trecho
da carta.
O documento continua, dizendo que, ao analisar o cenário
político, é possível perceber “claramente a incapacidade e inabilidade do
Governo Federal em enfrentar essas crises”. “Assistimos, sistematicamente, a
discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos
milhares de mortes pela Covid-19 [doença causada pelo novo coronavírus],
tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que
se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos
meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer
preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco
suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no
seguimento Àquele que veio ‘para que todos tenham vida e a tenham em
abundância’”, continua.
A questão econômica também é abordada na carta. O documento
diz que o “sistema do atual governo” não coloca no centro a pessoa humana e o
bem de todos, “mas a defesa intransigente dos interesses de uma economia que
mata, centrada no mercado e no lucro a qualquer preço”.
“O ministro da Economia [Paulo Guedes] desdenha dos pequenos
empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no país, privilegiando apenas
grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que
nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o número de desempregados
ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da
destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação,
educação, moradia e geração de renda”, afirma ainda outro trecho do documento.
O texto é assinado, entre outros, pelo arcebispo emérito de
São Paulo, dom Claudio Hummes, pelo bispo emérito de Blumenau, dom Angélico
Sandalo Bernardino, pelo bispo de São Gabriel da Cachoeira (AM), dom Edson
Taschetto Damian, pelo arcebispo de Belém (PA), dom Alberto Taveira Corrêa,
pelo bispo prelado emérito do Xingu (PA), dom Erwin Krautler, pelo bispo
auxiliar de Belo Horizonte (MG), dom Joaquim Giovani Mol, e pelo arcebispo de
Manaus (AM) e ex-secretário-geral da CNBB dom Leonardi Ulrich.
Eles afirmam ainda que “todos, pessoas e instituições,
seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento tão grave e desafiador”.
Leia a íntegra da carta abaixo:
Somos bispos da Igreja Católica, de várias regiões do
Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco e seu magistério e em
comunhão plena com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que no
exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos
pequeninos, da justiça e da paz. Escrevemos esta Carta ao Povo de Deus,
interpelados pela gravidade do momento em que vivemos, sensíveis ao Evangelho e
à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos os que desejam ver
superada esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento do povo.
Evangelizar é a missão própria da Igreja, herdada de Jesus.
Ela tem consciência de que “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no
mundo” (Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza de que “a proposta do
Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de
amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a
favor de alguns indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas
apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus […]
(Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho, 180). Nasce daí a compreensão de
que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta.
É neste horizonte que nos posicionamos frente à realidade
atual do Brasil. Não temos interesses político-partidários, econômicos,
ideológicos ou de qualquer outra natureza. Nosso único interesse é o Reino de
Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na construção de
uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização
do amor.
O Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua
história, comparado a uma “tempestade perfeita” que, dolorosamente, precisa ser
atravessada. A causa dessa tempestade é a combinação de uma crise de saúde sem
precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate
sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente
da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise
política e de governança.
Este cenário de perigosos impasses, que colocam nosso País à
prova, exige de suas instituições, líderes e organizações civis muito mais
diálogo do que discursos ideológicos fechados. Somos convocados a apresentar
propostas e pactos objetivos, com vistas à superação dos grandes desafios, em
favor da vida, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta
sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não
comporta indiferença.
É dever de quem se coloca na defesa da vida posicionar-se,
claramente, em relação a esse cenário. As escolhas políticas que nos trouxeram
até aqui e a narrativa que propõe a complacência frente aos desmandos do
Governo Federal, não justificam a inércia e a omissão no combate às mazelas que
se abateram sobre o povo brasileiro. Mazelas que se abatem também sobre a Casa
Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de madeireiros,
garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um desenvolvimento
que despreza os direitos humanos e os da mãe terra. “Não podemos pretender ser
saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas à nossa mãe terra
sangram também a nós” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da Colômbia por
ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/06/2020).
Todos, pessoas e instituições, seremos julgados pelas ações
ou omissões neste momento tão grave e desafiador. Assistimos, sistematicamente,
a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos
milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo
divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia
que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à
manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos
princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a
Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que veio “para que todos tenham
vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos
claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas
crises. As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a
vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais
a vida do povo. É verdade que o Brasil necessita de medidas e reformas sérias,
mas não como as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres,
desprotegeram vulneráveis, liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos,
afrouxaram o controle de desmatamentos e, por isso, não favoreceram o bem comum
e a paz social. É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que
privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande
maioria da população.
O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa
humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma
“economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro
a qualquer preço. Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência do
Governo Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se
colocar contra a ciência, contra estados e municípios, contra poderes da
República; por se aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes
condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a
flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população, e
das leis do trânsito e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação,
como as notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores radicais.
O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia
também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela
educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como
inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação
e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação
de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância
pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na
desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença
pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e
mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da
Saúde; na desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação
do enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares
dos mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão
adoecendo nos esforços para salvar vidas.
No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos
pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País,
privilegiando apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os
grupos financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o
número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal
descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo
da alimentação, educação, moradia e geração de renda.
Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e
internacionais, o Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos
mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas,
quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e
o povo que vive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. Estes são os mais
atingidos pela pandemia do novo coronavírus e, lamentavelmente, não vislumbram
medida efetiva que os levem a ter esperança de superar as crises sanitária e
econômica que lhes são impostas de forma cruel. O Presidente da República, há
poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à COVID-19, aprovado no
legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária, dentre
outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de
leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de
oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades
tradicionais (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional,
13/07/2020).
Até a religião é utilizada para manipular sentimentos e
crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus
líderes. Ressalte-se o quanto é perniciosa toda associação entre religião e
poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos
fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário. Como não ficarmos
indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a
falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o
amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua
justiça?
O momento é de unidade no respeito à pluralidade! Por isso,
propomos um amplo diálogo nacional que envolva humanistas, os comprometidos com
a democracia, movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade, para que
seja restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de
Direito, com ética na política, com transparência das informações e dos gastos
públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com justiça socioambiental,
com “terra, teto e trabalho”, com alegria e proteção da família, com educação e
saúde integrais e de qualidade para todos. Estamos comprometidos com o recente
“Pacto pela vida e pelo Brasil”, da CNBB e entidades da sociedade civil
brasileira, e em sintonia com o Papa Francisco, que convoca a humanidade para
pensar um novo “Pacto Educativo Global” e a nova “Economia de Francisco e
Clara”, bem como, unimo-nos aos movimentos eclesiais e populares que buscam
novas e urgentes alternativas para o Brasil.
Neste tempo da pandemia que nos obriga ao distanciamento
social e nos ensina um “novo normal”, estamos redescobrindo nossas casas e
famílias como nossa Igreja doméstica, um espaço do encontro com Deus e com os
irmãos e irmãs. É sobretudo nesse ambiente que deve brilhar a luz do Evangelho
que nos faz compreender que este tempo não é para a indiferença, para egoísmos,
para divisões nem para o esquecimento (cf. Papa Francisco, Mensagem Urbi et
Orbi, 12/4/20).
Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos
faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que
nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o
dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz”
(Rm 13,12).
O Senhor vos abençoe e vos guarde. Ele vos mostre a sua face
e se compadeça de vós.
O Senhor volte para vós o seu olhar e vos dê a sua paz! (Nm
6,24-26).
*Com informações da Folha de S. Paulo e do Metrópoles