Entenda o que fazer diante do julgamento da ADO26 e do Projeto de Lei 672/2019
“Cada um deve ter a possibilidade de se exprimir como pode e como quer diante da sua consciência, mas a Igreja deve poder dizer aos seus fiéis quais opiniões correspondem à sua fé e quais não correspondem. Esse é um direito e um dever, para que o sim seja sim e o não seja não[…]”, Joseph Ratzinger.
O campo de batalha é o lugar onde as forças militares se encontram, cenário dos combates importantes, em guerras – justas ou não. Ao longo da história sempre foi assim: lutar e, se possível, vencer a guerra, conquistar o inimigo, destruir para reconstruir.
Na guerra ideológica, porém, estamos longe de algo “justo”. O conflito por mentes e corações acontece em todos os lugares: já não há mais espaço destinado para um ringue civilizado, trata-se de guerrilha. Este movimento existe desde sempre e é reaprendido a cada geração. Mao-Tsé definiu em sete regras a essência da guerrilha: íntimo acordo entre a população e os guerrilheiros, retraimento ante um avanço inimigo em força, fustigamento e ataque ante um retraimento inimigo, estratégia de um contra cinco, tática de cinco contra um, particularmente graças ao que se chama o “retraimento centrípeto”, isto é, a concentração de forças durante o retraimento (ele dispunha de muito espaço na China); enfim, logística e armamento graças ao que é tomado do inimigo.[2]
Este símbolo de “luta revolucionária” não é à toa no imagético progressista; seu sentido de resiliência e pressão constante é característica marcante dos coletivistas, em várias frentes, e cada vez maiores, a deteriorar os fundamentos institucionais do Ocidente. E, no decorrer dos últimos 50 anos, podemos ver o ativismo LGBTQ+ buscar obstinadamente, muito mais do que “respeito”, mais até do que “aceitação”, mas a absoluta imposição de sua verdade, doa a quem doer.
As eleições de 2018 deram um sentido de “retração” em várias áreas da guerrilha ideológica progressista. Por isso tantas vezes ouvimos o termo “retrocesso”, porque, em seu entender, a marcha inexorável para o progresso (palavras do Ministro Barroso quando da exposição do voto no HC do Lula quando preso pela decisão de segunda instância) é barrada quando forças conservadoras conseguem mobilizar o povo e vencer. Hora de retrair em um campo, e concentrar forças em outro. Onde? No Supremo.
A ADO26 foi proposta pelo PPS (Partido Popular Socialista) em dezembro de 2013, logo após a Câmara enterrar o famigerado PLC 122/2006, que tratava da criação de um novo tipo penal, o crime de homofobia. A Ação atacou o fato de que o Legislativo se “omitiu” (ou terá sido um silêncio eloquente?) ao não legislar sobre a matéria e que seria, então, papel do Supremo, corrigir esta falha, preencher a lacuna. Veio 2014 e o progressismo continuou no poder. Em 2016 o impeachment iniciou um processo de retração combativa. A eleição de Bolsonaro tem recrudescido conflitos em arenas tradicionalmente “aparelhadas”, e a Suprema Corte, com a formação dos ministros notadamente de cosmovisão progressista, é uma delas.
Em nome da luta, os guerrilheiros estão passando por cima de questões fundamentais. A primeira é fazer com que haja crime sem definição anterior por lei, um massacre ao Estado de Direito (inclusive com a preocupação do próprio ministro Marco Aurélio quanto ao fato). A segunda é criar uma situação de um super-cidadão – o homossexual, que passa a ter um direito público subjetivo de escolher que tipo de “ofensa” será considerada homofóbica ou não, afinal, não há balizadores positivos em um tipo penal específico para tal.
O julgamento foi suspenso pelo Ministro Dias Toffoli, graças a uma estratégia da Câmara dos Deputados, que não é branda com o tema em questão, pela predominância de deputados com perfil conservador, conforme informações precisas do Colunista Renan Barbosa[3]. Porém já há maioria formada, ou seja, o colapso é só uma questão de tempo.
Uma das formas de se buscar uma solução legislativa para a matéria considerando o movimento ativista no Judiciário foi o PL nº 672/2019, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça em meio ao julgamento. Criminalizar a homofobia é o conteúdo central da lei, sendo concedida uma exceção aos templos religiosos. Não está claro, porém, se o exercício da fé (que vai além do templo), também será mantido.
O clima é de insegurança. O acontecerá? As diferentes confissões cristãs poderão continua a pregar sobre casamento e sexualidade? O padrão heteronormativo e monogâmico ainda poderá ser declarado em nossos púlpitos? Falar em pecados sexuais e práticas depravadas será possível? Poderemos alertar nossos jovens sobre isto sem que seja considerado, pela lei, como crime de ódio? São perguntas sem resposta. O futuro reservará muitas disputas judiciais em torno do assunto, e precisamos, mais do que nunca, fortalecer nossas bases como organização para estarmos prontos para o que vem por aí.
Fundamentos da Igreja sobre o matrimônio e sexualidade
Um exemplo é justamente mostrar o fundamento teológico, profundo e secular, a respeito do casamento monogâmico e heterossexual. Não é apenas uma convenção social, mas dogma de fé. Os escritos da Tradição Cristã explicam as razões porque a Igreja tem este fundamento em sua identidade. É uma visão antropológica – que vê a a humanidade em sentido integral: criada à imagem e semelhança de Deus:
A antropologia da igreja primitiva deve muito ao pensamento judaico, em especial à doutrina veterotestamentária de que os seres humanos foram criados a imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26-31). Paulo retomou essa ideia quando falou da santificação que Deus realiza no “novo homem, que se renova para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou” (Cl 3.9,10; cf. Ef 4.22-24). De fato, o apóstolo descreveu o processo do crescimento cristão como uma conformação progressiva à imagem de Jesus Cristo (Rm 8.29; 2Co 3.18). A insistência paulina na necessidade da renovação da imagem de Deus em nós só pode significar que essa imagem, antes da salvação e do processo de santificação, foi tragicamente desfigurada e corrompida pelo pecado.[4]
Quanto ao casamento, as determinações às quais devemos obediência estão registradas nas Escrituras e nos escritos do pais da igreja. Diferente das acusações progressistas de que tais peculiaridades do casamento são fruto de uma cultura que tem por fim oprimir os outros, na verdade, perceberemos que são resultado da leitura da Bíblia, reverberada pela escolástica, patrística e a teologia reformada: ramos dedicados a estudar a Palavra de Deus e seus desdobramentos na vida humana. Falando sobre o Matrimônio (Capítulo LXXVIII da Suma Contra os Gentios), Tomás de Aquino preleciona:
É de se considerar que, quando uma coisa se ordena para fins diversos, necessita de dirigentes diversos para os mesmos, porque o fim é proporcionado ao agente. Ora, a geração humana tem muitas finalidades: a perpetuidade da espécie, a conservação de algum bem social, como é a conservação de um povo em uma cidade. É também sua finalidade a perpetuidade da Igreja, que consiste na congregação dos fiéis.[5]
Também citamos sua fala, ao responder se o matrimônio é uma união, no art. 1º da questão 44 que trata da definição de matrimônio na perspectiva cristã:
A relação faz dois seres se referirem um ao outro. Ora, o matrimônio leva dois seres se referirem um ao outro: assim, o varão se chama o marido da mulher e esta, esposa do marido. Logo, o matrimônio pertence ao gênero da relação, nem é mais que uma união.[6]
Sendo as finalidades da geração humana identificadas conforme o doutor da igreja nos registra, conforme Gênesis 1.27, onde se lê que Deus criou homem e mulher à sua imagem e semelhança, remetendo-nos à ordem, sistematizada na criação.
[…] o matrimônio é natural, porque a razão natural duplamente nos inclina para ele. – Primeiro, quanto ao seu fim principal, que é o bem da prole. Pois, a natureza não visa só a geração dos filhos, mas, a criação deles e a sua educação até o estado de homem perfeito, como tal, que é o estado de homem virtuoso. Donde, segundo o Filósofo, os três benefícios que dos nossos pais recebemos: a existência, a nutrição e a disciplina. Ora, o filho sem pais determinados e certos não poderia ser por eles educado e instruído. E essa certeza não existiria sem a obrigação de unir-se um homem a uma mulher determinada, sendo isso o que constitui o matrimônio.[7]
Ainda uma palavra reformada que concorda com a tradição dos pais, conforme o Catecismo Maior de Westminster:
Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho e fêmea, com alma racional e imortal, e dotou-os de inteligência, retidão e perfeita santidade, segundo a sua própria imagem, tendo a Lei de Deus escrita no seu coração e o poder de cumpri-la, mas com a possibilidade de transgredi-la, sendo deixados à liberdade de sua própria vontade, que era mutável.[8]
Ali ainda encontramos que “o casamento deve ser entre um homem e uma mulher” (Capítulo XXIV, inciso I), e que “o matrimônio foi ordenado para o mútuo auxílio de marido e mulher, para a propagação da raça humana por uma sucessão legítima e da Igreja por uma semente santa, e para impedir a impureza.” (Capítulo XXIV, inciso II). A regra é clara: não há como relativizar os fundamentos da Igreja sobre o tema.
Diante de ameaças reais à liberdade de crer e professar tais verdades, a Igreja necessita com urgência apropriar-se do Direito Religioso para que esteja protegida contra qualquer arbitrariedade, seja do Legislativo, seja do Judiciário. A apologia deverá estar embasada por argumentos públicos, jurídicos, ao enfrentar a guerrilha aparelhada na sociedade e no Poder Público.
Como a Igreja deve proceder?
Seja o cenário da decisão do STF e do projeto de lei, precisamos agir. Aqui entram noções básicas do Direito Religioso:
“Direito Religioso”, que se comunica tanto com o Direito Público quanto com o Privado […]. O Direito Religioso agrega duas subdivisões em si, o Direito Canônico e o Direito Eclesiástico. […] a Igreja sempre se relacionou com o Estado e com a sociedade em distintos graus, e sempre existiu esta relação externa originadora de direitos e deveres que chamamos de Direito Eclesiástico. […] O Direito Canônico é aquela subdivisão do Direito Religioso voltado aos canôns da Igreja, do termo grego, régua, norma. […] todo o ordenamento jurídico interno de uma organização religiosa”[9]
O Direito Eclesiástico cuida da relação entre Igreja e sociedade e o Direito Canônico cuida das normas internas da Igreja – construído e consolidado com base na sua confissão de fé. Este é expresso, no Brasil, pelo Estatuto Social e Regimento Interno das organizações religiosas. Apesar de o termo só ganhar visibilidade com a Igreja Católica, o Direito Canônico não é monopólio, exclusivo dela, conforme apontamos em nosso livro: entendemos como Direito Canônico todo o ordenamento jurídico interno de uma organização religiosa, não se limitando apenas à Igreja Católica, mas a qualquer igreja, inclusive não cristã, assim como ocorre no Direito Eclesiástico.[10]
O nosso ponto: a negligência com as fontes documentais de nossa fé nos deixam vulneráveis à acusação de intolerantes. Como se opor a um comportamento sem que tal esteja registrado em nossas normas? A ferramenta do Direito Canônico Protestante será indispensável para a correta proteção de nossos interesses.
Alguns exemplos de Direito Canônico:
[…] organiza-se o Direito Canônico das demais organizações religiosas, com variações de acordo com o sistema de crenças e fé existente em cada confissão, como não poderia ser diferente. Por exemplo, para o Luteranismo, sua fonte primária de Direito Canônico é a sua declaração doutrinária, denominada de Livro de Concórdia, composto por dez documentos de crença que são reconhecidos como autoridade para os luteranos em matéria de Direito Canônico, além, é claro, da Bíblia Sagrada; percebemos aqui a “tinta de crença” na paleta de Direito Canônico luterana. Já a Igreja Metodista possui como fonte primária de Direito Canônico o Livro da Disciplina, que regula as leis, regras, políticas e diretrizes do Metodismo, além da Bíblia Sagrada.[11]
Nem a Igreja primitiva era desprovida de organização interna. De fato, o corpo de Cristo é feito de pessoas, mas podemos usufruir dos meios de organização para o máximo exercício efetivo da defesa da fé contra qualquer opressão maligna que venha ocorrer, inclusive por parte das esferas de poder de uma Nação. Vale lembrar do que a Confissão de Fé de La Rochelle preleciona sobre o Governo da Igreja, como aliado a protegê-la contra ataques mundanos:
Os ministérios: Quando à Igreja verdadeira, nós cremos que ela deve ser governada segundo a ordem estabelecida por nosso Senhor Jesus Cristo, a saber, que nela haja pastores, presbíteros e diáconos, a fim de que a pureza da doutrina seja mantida, que os desvios sejam corrigidos e reprimidos […]
Leis e regulamentos eclesiásticos: Entretanto, nós rejeitamos todas as invenções humanas e todas as leis que quiseram introduzir sob pretexto de servir a Deus e pelas quais se deseja submeter as consciências. Nós não aprovamos, exceto o que contribua a estabelecer a concórdia e seja apropriado em promovê-la e manter cada um – do primeiro ao último – em obediência.[12]
Assim sendo, recomendamos:
1 – Fortalecimento técnico aos documentos da Igreja – Estatuto Social, Regimento Interno, Código de Ética, Pacto de Membresia, etc., para um alinhamento jurídico-canônico às normas de fé e prática de cada organização religiosa;
2 – Treinamento constante da liderança quanto à liberdade religiosa no uso do púlpito, cuidados jurídicos no aconselhamento pastoral, trabalho com crianças e jovens, para uniformizar a linguagem da Igreja no tocante ao assunto;
3 – Educação dos membros sobre o assunto, tanto sobre a posição teológica institucional quanto das posturas individuais – em redes sociais, conversas e demais interações.
Não há mais espaço para uma governança eclesiástica dissociada das grandes questões que afetam a Igreja em sua convivência com o mundo. Que não queiramos ser tirados do mundo (antes do tempo), mas, sim, guardados do mal.
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[1] RATZINGER, Joseph. Ser Cristão na Era Neopagã. Vol. 1. Discursos e Homilias (1986 – 1999). Ecclesiae. São Paulo, 2014. p. 85
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerrilha, acesso em 27/5/2019.
[3] BARBOSA, Renan. Todas as disputas por trás do impasse sobre a criminalização da homofobia. Disponível em: < https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/renan-barbosa/todas-as-disputas-por-tras-do-impasse-sobre-a-criminalizacao-da-homofobia/ >
[4] ALLISON, Gregg R. Teologia Histórica: uma introdução ao desenvolvimento da doutrina cristã. São Paulo: Vida Nova, 2017. p. 384.
[5] DE AQUINO, Tomás. Suma Contra os Gentios. Livro IV, Capítulo LXXVIII. Ecclesiae. São Paulo, 2016. p. 747
[6] DE AQUINO, Tomás. Suma Teológica. Vol. 5 – Suplemento. Ecclesiae. São Paulo, 2016. p. 206
[7] DE AQUINO, Tomás. Suma Teológica. Vol. 5 – Suplemento. Ecclesiae. São Paulo, 2016. p. 191 e 192
[8] Bíblia de Estudo de Genebra. A Confissão de Fé de Westminster. 2ª Ed. São Paulo, 2009. p. 1788
[9] VIEIRA, Thiago Rafael. Direito Religioso: questões práticas e teóricas/ Thiago Rafael Vieira; Jean Marques Regina. Porto Alegre: Concórdia, 2018. p. 53, 60 e 61
[10] VIEIRA, Thiago Rafael. Direito Religioso: questões práticas e teóricas/ Thiago Rafael Vieira; Jean Marques Regina. Porto Alegre: Concórdia, 2018. p. 61
[11] Ibdem, p. 64
[12] Confissão de fé das Igrejas Reformadas da França, denominada confissão de fé de La Rochelle (A.d. 1559) Disponível em: < http://www.monergismo.com/textos/credos/Confissao_Franca_Rochelle.pdf > Acesso em 26/05/2019
*Por: Jean Marques Regina & Thiago Rafael Vieira. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: Criminalização da Homofobia: Ativismo Judicial x Projeto de Lei.