O prefeito da capital fluminense, Marcelo Crivella (PRB), se
diz um injustiçado pela imprensa. “Por quê? Sou um bispo evangélico.” (Foto:
Reprodução)
Sobrinho de Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino
de Deus, ele chegou ao noticiário internacional após enviar fiscais à Bienal do
Livro na sexta (6) para recolher “Vingadores – A Cruzada das Crianças”, que
mostra super-heróis homens se beijando. O Supremo Tribunal Federal vetou a
operação.
Em entrevista à Folha de S. Paulo, uma semana depois, na
sexta (13), ele disse que tomou a decisão não por causa do beijo, mas sim por
diálogos que, a seu ver, ofenderiam o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Em 50 minutos de conversa, o candidato à reeleição em 2020
repete bordões contra a Rede Globo, que considera sua inimiga, e reafirma sua
disposição em cortar verbas do Carnaval carioca.
A prefeitura diz que zelou pelo cumprimento do ECA no caso da Bienal. O estatuto diz apenas que publicações com “material impróprio” devem ser embaladas, com advertência sobre o conteúdo. Por que inferir que um beijo de dois homens vestidos seria inadequado?
Não foi censura porque há previsão em lei. Não eram apenas
as imagens, haviam diálogos, e eles sugeriam relações afetivas, não importa se
homossexuais ou heterossexuais. Houve denúncias de famílias que se sentiram
ofendidas. Agora, o que a imprensa não notificou é que demos um prazo para que
se colocasse esses livros dentro da embalagem prevista. No dia seguinte,
voltamos lá e disseram que tinham vendido tudo.
Por que o sr. acha que os diálogos sugeriam conteúdo sensual, pornográfico?
Sugeriam isso. E isso não é próprio para criança.
Peço licença para mostrar ao sr. estas imagens que circularam nas redes [beijos entre Mônica e Cebolinha já adolescentes e Branca de Neve e seu príncipe encantado]. Também seriam impróprias para menores?
Se o Cebolinha ou a Mônica, ou o príncipe e a princesa,
tivessem dito o que falaram os personagens na “Cruzada das Crianças”, teria que
ser embalado.
O nome o incomodou? Porque a publicação era para o público
juvenil.
O livro diz que um rapaz deveria rebolar o bumbum, coisas do
tipo [na verdade, um personagem questiona se o outro vai “levantar o traseiro
daí e fazer alguma coisa”, expressão para alguém agir logo). Se está escrito
que o Bolinha e a Luluzinha [falaram a mesma coisa], deve ser colocado em
embalagem lacrada, opaca e com advertência.
Ver pessoas do mesmo sexo se beijando é algo que o incomoda?
Minha opinião pessoal pouco importa. A entrevista é com o
prefeito. E um prefeito que não zela pelas crianças talvez esteja cometendo o
pior dos seus equívocos. O que fizemos, repito, foi obedecer a lei. Na decisão
do Supremo Tribunal Federal, questionei o ministro [Gilmar Mendes, que permitiu
a venda dos gibis]: como obedecer a sentença sem descumprir o ECA? Não me
responderam. Se fosse simples, teriam respondido na hora.
O último ciclo eleitoral foi marcado pela ascensão de uma direita conservadora. O sr. se vê nesse nicho?
O que você chama de conservadorismo?
Gostaria que o sr. me respondesse. Mas, grosso modo, no
campo da moral, pode-se resumir como dar primazia a valores em torno da chamada
família tradicional, homem e mulher, ser contra o aborto etc.
O conservadorismo que pautou a eleição foi o combate à
corrupção. E nisso eu sou conservador.
O combate à corrupção de fato foi uma bandeira. Mas
polêmicas como a do Queermuseu [mostra com tema LGBT atacada por conservadores]
trouxeram questões sobre como a família brasileira deveria ser definida.
Não vejo conservadorismo, não nessa maneira retrógrada que
as pessoas tentam, vamos dizer assim, colocar. Existe o prefeito devotado à
proteção da criança, da família. Se você notar, por parte da imprensa do Rio,
existe um “pré-conceito”. Por quê? Sou um bispo evangélico. Tudo o que digo,
absolutamente tudo, já traz uma ideia ao repórter de que ali está falando o
bispo com posições bíblicas. Se você for a um culto meu na igreja, com certeza
vai ouvir eu pregar o Evangelho. Mas aqui, na prefeitura, não. Para você ter
uma ideia, fiz um vídeo e mandei para a Globo, mas eles censuraram. Aliás, tem
um artigo que foi publicado hoje [sexta] na Folha, depois de três meses, que
foi censurado no Grupo Globo. A Globo é a imprensa da censura.
É normal que governantes se sintam incomodados com a
cobertura da mídia sobre suas gestões. O sr. centra suas críticas à Globo. É um
pouco como o ovo e a galinha? A Globo o critica por ser sobrinho do bispo Edir
Macedo, dono da concorrente Record, ou o sr. critica a Globo por ser sobrinho
dele?
[risos] Não seria uma boa pergunta para um prefeito de uma
cidade com tantos assuntos a tratar: enchentes, educação.
O sr. trouxe a Globo à conversa, por isso pergunto.
Há, sim, um preconceito da Globo. Não mostram as coisas boas
do governo. Tem uma hashtag famosa , não fui eu que inventei: “Isso a Globo não
mostra”. Outra: “O povo não é bobo [abaixo a Rede Globo]”. O fato concreto é
que havia uma publicação inadequada [na Bienal]. O resto é mero ativismo,
voluntarismo da imprensa. Tem o pastor evangélico que está sendo homofóbico, e
isso pode vender jornal. Mas houve cumprimento da lei, tanto é que foi
ratificado pelo presidente do Tribunal de Justiça do Rio.
O presidente do TJ, Cláudio de Mello Tavares, já teve falas
contrárias à comunidade LGBT, como dizer que heterossexuais tinham direito de,
com base em sua fé, “entenderem que a homossexualidade é um desvio de
comportamento”.
Na minha vida parlamentar, sempre me pautei no respeito à
decisão de consciência de cada um. Se Deus respeita, imagina eu se não vou
respeitar? A primeira página da Bíblia fala de um fruto proibido que a mulher
decidiu comer. E Deus respeitou. Temos uma secretaria de Diversidade com
diversos funcionários, próximos a mim, que são casados [com pessoas do mesmo
sexo]. Jamais discriminei. Tenho até membros da minha família.
O presidente Bolsonaro tem apoio forte na base evangélica,
assim como o sr. Vê uma aliança possível em 2020? O PSL, afinal, deverá ter
candidato próprio.
Sou candidato à reeleição. E tudo que um candidato quer é
apoio. Quero apoio do presidente, do governador, dos vereadores, de quem eu
puder.
Como avalia o governo Bolsonaro? Mais errou ou mais acertou até aqui?
O governo tem grandes medidas para a nossa economia. Como eu
no Rio, [Bolsonaro] pegou o Brasil com um desemprego colossal, economia
estagnada, processo de corrupção que é um Himalaia de desilusão para o povo.
Não é fácil em seis, sete meses botar a economia para voltar a crescer 3%, 4%.
Se o presidente mantiver espírito de debate com o Congresso e conseguir ficar
ileso com as nomeações que fez [em termos de corrupção], não tem como o Brasil
não voltar ao trilho.
Atribuiu-se a ações suas na Bienal e do governador João
Doria em escolas paulistas, ao recolher livros com questões de gênero, um afago
no segmento conservador, por já estarem de olho na eleição.
Acho essa pergunta extremamente preconceituosa. Nós
cumprimos a lei, eu não escrevi o ECA. Inclusive, tenho uma música que compus
para minha filha quando era pequenininha: “Tem coisas que eu não sei/ Tem
coisas que eu nem quero saber/ Mesmo depois que eu crescer/ Vou guardar meu
mundo para não sofrer”. Sou pai de três filhos. Quero que as crianças não tenham
um choque, sejam obrigadas precocemente a ter que decidir termos que são
difíceis até para adultos.
O sr. citou a bandeira da corrupção em 2018. Pois a da
segurança pública também foi forte. O governador do Rio, Wilson Witzel, é um
linha-dura nesse campo. Já falou que é preciso mirar na cabecinha e atirar.
Queria saber o que o sr. acha e se está atrás de uma aliança com Witzel para
2020.
Candidato precisa de apoio. Se eu não tiver que abrir mão
das minhas convicções, quero apoio de todos. Se esquerda quiser me apoiar, será
muito bem-vinda.
E suas convicções sobre segurança pública, convergem com as
de Witzel?
Prefiro não comentar. Quero confiar na capacidade dos PMs
para só atirarem em casos de extrema necessidade de defesa da vida.
Muitos associaram a indicação do filho dele para um cargo
municipal como uma sinalização ao governador.
Posso ser sincero? Quem cuida desse setor é o Nélio
[Giorgini, coordenador especial da Diversidade Sexual], e ele o contratou sem
eu saber. Não houve nenhuma premeditação ou tentativa de acordo.
O sr. cortou verbas para o Carnaval carioca, decisão
associada a sua fé. O sr., aliás, nunca fez questão de ir à festa, uma tradição
de prefeitos.
Fui o primeiro cantor evangélico a gravar um samba. “Gente
Fina”. Me lembro de uma vez, num culto da catedral, com o bispo Macedo
balançando o pezinho. Ele pode até negar, mas eu lembro disso. Aliás, o Bezerra
da Silva gravou o meu samba!
E por que cortar verbas do Carnaval, que movimenta turismo e comércio?
Carnaval gera R$ 80 milhões em ingressos para a Liesa [Liga
Independente das Escolas de Samba]. E R$ 240 milhões para a Globo em
patrocínios. A prefeitura tem que pagar R$ 70 milhões? É certo a prefeitura
pagar o conteúdo para a Globo faturar? É certo pagar o Carnaval para que a
Liesa fature? Não. Não se pode ter recurso público em atividade privada. Seja o
Rock in Rio, seja o Carnaval. Podemos fazer a festa do Réveillon. Ali vai todo
mundo. Triplicamos os recursos da Intendente Magalhães [séries B, C e D das
escolas de samba]. Isso a Globo não mostra… Mas o povo não é bobo. Com a
economia do Carnaval estamos aplicando em outra escola, a escola da rede
pública municipal. Não tenho como gastar tanto recurso se o Carnaval pode ter o
seu patrocínio próprio. Costumo dizer que o Carnaval é aquele bebê parrudo, que
já tem que largar o peitinho da mamãe dele. Já está indo para a papinha.
Bolsonaro acabou com a publicação de balanço de empresa em jornais, lei considerada defasada. Mas o presidente tinha um discurso forte de que não ia sobrar nada para veículos que considera hostis a ele. O que o sr. diz sobre o Carnaval não pode ser visto também como retaliação à Globo?
Se fosse a Record, seria a mesma coisa. É uma questão de
moralidade pública. É exatamente aquela pergunta que você fez antes, quem
nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Acha que eles me atacam porque eu cortei o
recurso do Carnaval ou eu cortei porque eles me atacam? Não importa pro povo, o
importante é que o dinheiro está indo para a educação.
A Cidade das Artes e o MAR [Museu de Arte do Rio] estão com problemas financeiros. Pretende socorrê-los?
A Cidade das Artes teve 400 mil visitantes, coisa que nunca
teve no passado. Está um colosso, não tem um salário atrasado. O Museu do
Amanhã e o MAR, projetos da Fundação Roberto Marinho, é a mesma coisa. Agora,
eu sei que você vai falar que é porque eu sou sobrinho do bispo Macedo, mas
tenho que falar: o Museu do Amanhã foi feito com R$ 400 milhões que foram
tirados das obras previstas no Morro da Providência, que é a primeira favela do
Brasil. É muito bonito, mas podia ter custado menos. Aquilo foi um mimo que o
antigo prefeito fez para a Globo.
O Festival do Rio tinha patrocínio municipal que foi
retirado na sua gestão. Agora corre o risco de acabar.
Precisamos investir recursos públicos para patrocinar
eventos que precisam de apoio por não cobrar ingresso. Aqueles eventos que têm
lei Rouanet, que vendem ingresso, não são prioridade.
Bolsonaro defende um ministro terrivelmente evangélico no Supremo, um bom cristão na Ancine. O bispo Macedo escreve, no livro “Plano de Poder”, que evangélicos precisam ocupar espaços na política. A religião professada deve ser vista como um ponto a mais no currículo?
Política e religião são coisas que caminham entrelaçadas
porque ambas são sobre servir ao próximo. Temos que nos preocupar em separar o
Estado e a igreja. Não pode haver taxação do Estado sobre igreja nem
financiamento. Qualquer relação como essa nos remeterá a um passado obscuro,
até de inquisição. Agora, o político professar sua fé é natural, não tem
absolutamente nenhuma mácula na democracia, em que prevalece a maioria, com
respeito à minoria.
O sr. ainda está com os bens bloqueados na Justiça [em 2018, Crivella foi acusado de improbidade administrativa supostamente cometida quando ele era ministro da Pesca, na gestão Dilma]?
Não, não. Ficou duas ou três semanas, a minha conta no
banco, por uma bobagem que foi cancelada. Talvez você queira falar sobre o
impeachment [que tramitou contra ele em junho de 2019], que foi a coisa mais
grave. Diria que o fracasso do impeachment foi o ato mais majestoso de
revogação de todas as injúrias que amargurei na vida pública. É o preço que se
paga para se conquistar um lugar no coração do povo.
Ouve-se muito que o sr. é um prefeito que não gosta do Rio, que odeia o cargo. O sr. está disposto a disputar a reeleição e o coração do povo?
Perdi duas eleições [para governador; e mais duas para
prefeito], mas o que nunca perdi foi o amor pela minha gente sofrida, valente.
Fui motorista de táxi e meu orgulho é nunca ter rejeitado um passageiro, alguém
em cadeira de rodas.
Nota da Rede Globo
Procurado pela Folha de S. Paulo para responder às menções
feitas por Marcelo Crivella nesta entrevista à emissora, o Grupo Globo diz, em
nota, que “o prefeito do Rio insiste em mentir” sobre o grupo no que, segundo o
comunicado, é “clara tentativa de retaliação por conta da cobertura
jornalística” da gestão do prefeito. A nota diz ainda que “a acusação de
censura causa espanto após o ocorrido na Bienal, quando só uma decisão do STF
deteve seu ímpeto [de Crivella] pró censura”.
O Grupo Globo declara não ser o detentor dos direitos ou o
dono do Carnaval carioca. “O Grupo faz investimentos altos para comprar os
direitos de transmissão de quem os detém —as escolas de samba— e poder
comercializar cotas de publicidade em sua programação.”
Ainda segundo a nota, o grupo “investe muito também na
cobertura e na promoção do evento, por acreditar na importância cultural e na
capacidade de gerar renda e reconhecimento para o Rio de Janeiro”.
“A mesma abordagem enviesada o prefeito faz em relação ao
Museu do Amanhã e ao MAR, que sāo da Prefeitura “, continua o comunicado. “O
Grupo Globo e a Fundação Roberto Marinho”, diz a nota, “se orgulham de terem
contribuído para concretizar museus que hoje já são marcos na cidade e dos mais
visitados da América Latina”.
Segundo o grupo, cabe à prefeitura “gerir esse valioso
patrimônio com um mínimo de responsabilidade, ao invés de voltar sempre ao tema
com uma ótica destrutiva, por conta de sua interminável briga política com
gestões anteriores”.
*Fonte: Folha de S. Paulo