Era 1 de Dezembro de 1955, no cair da noite, quando Rosa Parks saiu do trabalho e sentou-se numa cadeira que ficava no centro do ônibus. Vale salientar que os ônibus reservavam as primeiras filas de assentos para os brancos e as últimas para os negros. No centro, qualquer um podia se sentar, mas se um branco ficasse de pé, tinha preferência. Rosa Parks estava em um desses assentos, e quando em um ponto próximo de um teatro um bom número de brancos subiu ao ônibus, o motorista pediu que ela se levantasse. Ela respondeu: “Não”.
A atitude de Parks evidencia que, às vezes, não precisamos de grandes revoluções: precisamos apenas dizer “não” a algumas coisas, e isso criará algo. Foi com essa atitude que começou a grande luta em prol dos direitos civis dos negros americanos — luta que fora abraçada pelo pastor Batista Martin Luther King Jr, quem se tornou o maior responsável pelo movimento.
Esse famoso episódio revela como nossa humanidade fora completamente esvaziada pelo mito da supremacia racial. De um lado, uma mulher negra que queria apenas ver seus direitos civis reconhecidos; do outro, pessoas brancas alegando que todo ser humano cuja cor da pele era negra não deveria ser considerado humano.
Sociedade desumanizada
O que me entristece em tudo isso é saber que algumas igrejas não foram capazes de defender a dignidade do ser humano; antes, muitas foram responsáveis pela perpetuação da visão reducionista da humanidade, diferentemente da proposta das Sagradas Escrituras; outras ainda usaram o texto bíblico com a finalidade de perpetuar tais infâmias. Tudo isso foi possível porque a igreja foi incapaz de lidar com a situação de uma sociedade desumanizada.
De modo assustador, tais atos ainda insistem em nos assombrar cinquenta anos depois. O recente episódio da morte de George Floyd trouxe à tona algo que há muito temos nos esquecido de tratar, principalmente como cristãos: o racismo. Digo isso por experiência: sou negro, oriundo do continente africano, e pude passar por várias experiências nada abonatórias neste Brasil. Ser considerado suspeito por carregar na pele a cor negra é nada menos do que uma grande evidência de como a nossa humanidade foi completamente esvaziada.
Quantas vezes, como Floyd, nós, negros, somos sufocados pelos seguranças em estabelecimentos comerciais ou fulminados com olhares discriminatórios em ruas desertas ao cruzar com alguém de pele branca? Sou pai de uma menina linda, mas infelizmente ainda tenho de chorar ao ouvir o discurso de King, pois seu “sonho” ainda está longe de ser realidade.
Como cristãos, é nosso dever lutar contra tudo que tenta frustrar ou descaracterizar o que fora criado por Deus como bom. Como pode não ser diabólica a ideia de que o ser humano de cor diferente da minha é menos evoluído? Como alguém ousaria desconfigurar e considerar como mau aquilo que Deus viu como bom? Não seria esse o mesmo sussurro da serpente no jardim? Enganando nossos pais, a ponto de verem como mau aquilo que Deus lhes havia dito que era bom?
De certo, que se quisermos entender como é catastrófico o afastar-se de Deus, o racismo tem muito a nos ensinar. Grosso modo, racismo é pecado por se tratar de uma transgressão àquilo que Deus estabeleceu como bom. O Eterno, ao criar-nos, soprou o fôlego de vida, através do qual nos tornamos humanos e seres semelhantes a Ele.
O racismo nada mais é do que essa tentativa de ofuscar a beleza das coisas criadas por Deus, incluindo o ser humano criado à sua imagem e semelhança. De lembrar a história da redenção, corrobora-se que a criação é bela por isto: no final de tudo, todos os seres humanos de todas as tribos e nações sentar-se-ão à mesa com o Criador, e Ele contemplará o mosaico da sua criação com alegria. O cristão poderia ser racista? Não! Mas infelizmente existem pessoas que dão ouvidos aos sussurros da serpente em nossas igrejas e acabam sendo influenciadas pelo inimigo que tem a finalidade de destruir a preciosa comunhão entre os irmãos.
“Não consigo respirar”
“Não consigo respirar” talvez seja uma sentença que evidencia o quanto precisamos do verdadeiro ar da graça em nossos pulmões, a fim de refletirmos verdadeiramente a imagem do Criador. Se não fosse o fôlego de vida, certamente não seríamos alma vivente. É hora de o verdadeiro evangelho servir como fonte doadora da vida, para tornarmo-nos verdadeiramente humanos.
Nossa humanidade só é encontrada no ato de respirar, que é possibilitado pelo sopro da vida. De certo que a falta de ar em nossos dias nada mais é do que a grande evidência de como a humanidade, longe do Criador, tem perdido sua verdadeira essência. É no afastar-se do respirar que nascem as barbáries — como a do racismo — que insistem em nos asfixiar e nos categorizar em núcleos raciais.
Que a Palavra produza em nós um olhar de sensibilidade e amor para com o outro, a ponto de não nos importarmos com as “cadeiras vazias” nesta vida, pois, na casa de nosso Pai, há lugar para todos à mesa — todos! —, de toda tribo ou nação. Ademais, se os males desta vida tornam o ar cada vez mais escasso para respirar, precisamos nos lembrar de que, em Cristo, temos vida, e vida em abundância.
Tomás Camba, é pastor, escritor e professor de filosofia e teologia.
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