Um estudo identificou várias expressões chave que ligam os sermões de dezenas de pastores evangélicos nos Estados Unidos a teorias da conspiração, especificamente à do grupo QAnon, que explora a alegada existência de uma cabala secreta de pedófilos satânicos e canibais que opera uma rede de tráfico sexual infantil e domina o mundo através de um “Estado Profundo”.Os apoiantes da QAnon afirmam que Donald Trump foi eleito para expor e destruir a cabala, e que, num futuro próximo, os conspiradores virão a ser expostos, presos e julgados, após um “grande acordar”.A teoria, milenarista e apocalíptica, surgiu nas redes sociais em 2017 através de um homem apenas identificado com Q e é considerada como de extrema-direita pelos seus denunciantes. Políticos e atores ligados ao Partido Democrata têm sido especialmente ligados à cabala pelos seguidores da QAnon.
A difusão da teoria foi oficialmente proibida na plataforma de vídeos YouTube mas há indícios de que tem continuado a expandir-se à boleia dos sermões de pastores evangélicos ansiosos por cativar novas audiências por via digital, sem qualquer menção oficial à QAnon.
Frases como “grande acordar “ e “tráfico sexual infantil” têm sido assinaladas nos sermões publicados digitalmente e analisados pela Pendulum, uma empresa que usa aplicações de rastreamento para identificar a expansão de informações falsas em vídeos da rede YouTube. “Chapéus brancos” é outra expressão encontrada, habitualmente usada para identificar as pessoas dedicadas a expor a alegada cabala, assim como “nós o povo”, uma referência dos seguidores da QAnon a si mesmos.
A investigação da Pendulum, em colaboração com a Vice News, encontrou pelo menos 1800 canais cristãos evangélicos que publicaram, em três anos, cerca de 20.000 vídeos incluindo pelo menos uma frase típica da QAnon. Ao todo obtiveram mais de 208 milhões de visualizações, com 47 deles a ultrapassar a solo um milhão de visitas.Além das palavras
O mais visitado é administrado pelo pastor televisivo Sid Roth, um evangélico octogenário cujo programa “’É Sobrenatural” é também difundido por canais de televisão. O canal de Roth publicou ao todo no YouTube 23 vídeos plenos de frases como “abuso infantil”, “grande acordar”, “cabala” e “abuso ritual”, que contam já nove milhões de visualizações.
À Vice, outro pastor evangélico, Greg Locke, negou qualquer ligação a “todo esse disparate” do QAnon, apesar de, num sermão em junho, no seu ministério de Nashville, ter denunciado a existência de “túneis” sob a Casa Branca e estigmatizado o Presidente Joe Biden, a apresentadora Oprah Winfrey e o ator Tom Hanks, entre outros, como um “bando de pedófilos”.
Locke também defendeu no mesmo sermão que Donald Trump era o Presidente legítimo, referindo ser “necessário fumar muita erva na cave da mamã para não acreditar nisso”. “Porque não falam mais pastores destas coisas? Talvez não queiram parecer loucos. Mas eu já sou louco”, referiu.
Apesar do discurso alinhar com as teorias QAnon difundidas nos últimos anos, o pastor garantiu à Vice News “não ser nenhum Q”. “Procuro a verdade e digo-a”, afirmou.Mencionar a palavra QAnon seria suficiente para banir do YouTube os sermões do pastor Locke, privando-o de uma audiência vital em tempos de confinamento devido à pandemia e de um dos canais mais simples para continuar a chegar aos fiéis.
Apesar das referências, os vídeos continuam disponíveis.
Ivy Choi, uma porta-voz do YouTube, disse à Vice News que a equipa que garante a veracidade dos conteúdos da plataforma está ciente da ocorrência das palavras-chave ligadas à teoria QAnon, mas lembrou que isso não basta para determinar se houve violação dos seus códigos de conduta que justifique retirar um dado vídeo.
“Nós removemos conteúdos com base no que é dito e no contexto em que é apresentado” explicou. “Isso quer dizer que, apesar da ocorrência de termos habitualmente associados com grupos como o QAnon ser um elemento importante que usamos para analisar e aplicar as nossas diretivas, não é o único fator determinante”.Uma questão de concorrência
Os dados recolhidos pela Pendulum mostram que, ao longo de 2020 as menções das palavras de código da teoria QAnon aumentaram até atingir um pico em finais de dezembro, dias antes da invasão do Capitólio a seis de janeiro de 2021, na qual os seguidores da teoria participaram ativamente.
Desde então registou-se algum declínio mas Sam Clark, o fundador da empresa, disse à Vice News que os níveis se mantêm relativamente altos.
Uma das explicações pode ser precisamente a concorrência provocada pela explosão dos sermões de pastores evangélicos no mundo digital, perante a ausência de congregações presenciais devido às restrições pandémicas. Uma forma de atrair e reter a atenção dos fiéis pode passar por sermões polémicos adotando teoris de conspiração ou discursos apocalípticos, lembram analistas.
Muitos poderão ainda apenas ser homens e mulheres autointitulados pastores sem qualquer controlo institucional, que apenas procuram garantir audiências nas redes sociais e por isso recorrem a teorias de conspiração em busca de ouvintes e por um nicho que lhes garanta sustento e prestígio, apontam ainda os observadores.