A vendedora Juliana Arcanjo Ferreira, de 33 anos, foi absolvida pela Justiça da acusação de violência doméstica e lesão corporal contra a filha. Denunciada pelo Ministério Público de São Paulo após levar a menina em uma cerimônia de iniciação no candomblé, a mulher está há mais de seis meses sem ver a criança de 11 anos.
Tudo começou quando o pai registrou um boletim de ocorrência na 2ª Delegacia de Defesa da Mulher da cidade acusando a ex-esposa de agredir a filha. Depois disso, o Conselho Tutelar de Campinas, no interior de São Paulo, entregou a criança aos cuidados dele, em 22 de janeiro.
Segundo o relatório da polícia, ao qual o UOL teve acesso, o pai da criança, o design gráfico Bruno Henrique Penedo, 34, declarou que, enquanto sua filha passava o fim de semana com ele, percebeu algumas cicatrizes na menina e a indagou sobre isso. No boletim de ocorrência, as marcas foram registradas como cicatrizes “referentes a cortes feitos por navalha durante ritual religioso” em uma “seita de quimbanda”.
Um exame de corpo de delito do IML (Instituto Médico Legal) apontou que as marcas na menina, localizadas no ombro direito e esquerdo, eram lesões corporais de natureza leve e não causaram incapacidade. Não houve conclusão sobre terem sido feitos sob tortura ou outro meio cruel.
Filha e mãe explicaram que as marcas surgiram após as duas participarem de um rito tradicional no candomblé também chamado de “cura”, realizada no dia 9 de outubro de 2020, em São Paulo, quatro meses antes do registro do boletim de ocorrência. Neste intervalo de tempo, Juliana conta que a filha e o ex-marido estiveram juntos várias vezes e nunca houve nenhum comentário sobre as cicatrizes.
A ialorixá (mãe de santo) Omilade, do terreiro Ègbé N’la Yemoja, na zona Sul de São Paulo, explica que o processo iniciático de alguns segmentos de religiões de matriz africana incluem a escarificação (pequenas incisões praticadas sobre uma superfície), chamadas de “Gbére”, ou, popularmente, como “curas”. Ela explica que o procedimento e as marcas não são danosos e, quando feitas, seguem protocolos de segurança.
“São marcas da comunidade, como acontece em algumas etnias africanas. As Gbére não são profundas, não doem, são marcas importantes designadas na consulta oracular”Ialorixá Omilade, do terreiro Ègbé N’la Yemoja.
Separação
Juliana viu a filha pela última vez em 21 de janeiro, uma quinta-feira, pouco antes de ela ir passar alguns dias na casa do pai. No sábado, quando a menina deveria retornar, a vendedora foi surpreendida com uma mensagem do ex-marido. Ele exibia uma medida protetiva do conselho tutelar com validade de 30 dias. Baseado no boletim de ocorrência, o documento estabelecia que a filha fosse entregue aos cuidados do pai. No dia 25 de janeiro, a Justiça negou uma liminar em que Juliana tentava retomar a filha.
Candomblecista há cinco anos, a mulher passou a levar a filha ao terreiro faz dois anos. Ela diz que a menina nunca demonstrou resistência para acompanhá-la.
Ela gostava. Tinha amizade com as outras crianças de lá, elas corriam pela casa e se divertiam. Estou sem ver a minha filha por pura intolerância religiosa vinda do pai dela”.
O casal se separou quando a menina tinha seis meses de idade. Desde então, a vendedora mantinha a guarda da criança. Um ano e meio depois, o divórcio foi oficializado. Pelo acordo, a filha passava a quinta e sexta com o pai em uma semana e, na outra, o sábado e o domingo. O valor da pensão foi fixado em R$ 150. “Se ele pagou [pensão] três meses foi muito. Ele sempre dizia que não tinha dinheiro, que estava sem condições”, conta.
“Criei a minha filha sozinha desde que ela tinha seis meses de idade. Não consigo falar com ela nem pelo telefone. Não sei como ela está, mas creio que não esteja bem. Ela é muito apegada a mim”, diz.
Coordenador executivo do Idafro (Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras), o advogado Hédio Silva Jr. representa Juliana. Ele afirma que irá ingressar com um pedido imediato de busca e apreensão para que a guarda retorne para a mãe. “É inaceitável que o pai esteja impedindo contato entre mãe e filha com base em um rabisco de conselheiro tutelar”, diz. O caso está em segredo de Justiça.
Em nota enviada ao UOL, a advogada de defesa do pai, Gabriela Nogueira Satyro, afirmou, com veemência, que o caso não é motivo por intolerância religiosa. Segundo ela, Bruno sempre respeitou a fé professada pela mãe e jamais se opôs que a filha tivesse a mesma orientação religiosa que ela, o que já ocorria sem qualquer objeção dele. Contatado pela reportagem, o designer reiterou a nota de sua defesa, não quis falar sobre os motivos pelos quais registrou o boletim de ocorrência e disse que os fatos serão apurados no processo judicial.
Absolvida
Após o pai registrar o caso na polícia, Juliana foi denunciada em maio pelo MP-SP à Justiça por violência doméstica e lesão corporal. O promotor Gustavo Simioni Bernardo afirmou que as marcas encontradas na menina foram um “resultado danoso” e que Juliana agiu por ação e também por omissão, uma vez que poderia ter evitado os cortes.
“O dever de agir lhe incumbia por obrigação legal de cuidado, proteção ou vigilância à filha menor, e também porque, com seu comportamento anterior (ao levar a filha ao local do fato), criou o risco da ocorrência do resultado danoso”, afirmou o promotor.
Nesta quarta-feira (15), o juiz Bruno Paiva Garcia, da Comarca de Campinas do Tribunal de Justiça de São Paulo, absolveu Juliana de todas as acusações. O magistrado destacou que a liberdade religiosa é um um direito constitucional e a transmissão das crenças aos filhos não pode “acarretar consequências penais” desde que feita com “respeito à vida, à liberdade e segurança”.
Na hipótese dos autos, não se verifica qualquer justificativa, senão a intolerância religiosa, para a restrição a ritual próprio do candomblé
“Bruno Paiva Garcia, juiz da Comarca de Campinas do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Contatado pela reportagem e indagado sobre as acusações de intolerância religiosa, em nota, o MP-SP o disse que “o racismo religioso tem sido pauta de discussões e estudos internos visando à discussão da atuação dos integrantes da instituição” e citou a criação da Rede de Enfrentamento ao Racismo no órgão. O UOL entrou em contato com o Conselho Tutelar de Campinas, mas até a publicação deste texto, o órgão não se manifestou.
Fonte: https://noticias.uol.com.br/