Pastor Valdemar Figueredo
O ministro Edson Fachin iniciou a discussão do tema sobre
abuso do poder religioso no final de junho, em sessão do Supremo Tribunal
Federal. Para ele, o abuso do poder religioso põe em risco a liberdade do voto
e deveria ser punido já na próxima eleição. A sugestão de Fachin é que a
infração possa acarretar, inclusive, a cassação de mandato.
A reação contrária à fala do ministro do STF foi imediata,
especialmente de pastores evangélicos e partidos de linha conservadora, como o
PSL. Mas também há entre os religiosos quem apoie a ideia. Esse é o caso do
pastor batista e doutor em Ciências Políticas Valdemar Figueiredo Filho. Ele
lançou em 2017 o livro “Abuso de Poder – político, econômico, teológico e
simbólico”, em que trata do tema. Agora chega às livrarias “A fraquejada de um
país terrivelmente evangélico”. “O que está em questão é o abuso: quando
existem manipulações ou quando a natureza do grupo religioso é deturpada em
função de outros interesses”, define Figueiredo Filho.
Ele, porém, acredita que estabelecer punição para esse tipo
de distorção, como quer Fachin, não é tarefa fácil, diante da força política
dos evangélicos.
Nessa entrevista para Chico Alves, colunista do UOL, o
pastor discute esse tema espinhoso.
PERGUNTA – O sr. é a favor de que se estabeleça punição para o abuso do poder religioso?
Valdemar Figueiredo Filho – Quando a gente pensa em criar
regras para delimitar o famigerado uso de informações erradas, as fake news da
vida, não está em questão a restrição da liberdade de imprensa e liberdade de
opinião. Mas essa liberdade pode se transformar em um abuso. E esse abuso deve,
sim, ser caracterizado por parte das autoridades, de acordo com a lei, como fake
news, já que não tem fonte, falta veracidade e, portanto, não se pode tratar
isso como notícia ou liberdade de imprensa.
Por analogia, da mesma forma podemos tratar o abuso do poder
religioso. Não está em questão a liberdade religiosa, nem de reunião e nem de
manifestação da crença. O que está em questão é como isso pode se transformar
em um abuso quando existem manipulações ou quando a natureza do grupo religioso
é deturpada em função de outros interesses. Podem ser interesses econômicos,
mas aqui especificamente estamos tratando de interesses políticos e eleitorais.
Já existem leis que restringem esse tipo de relação, nos
templos religiosos. Portanto, estabelecer limites não é ferir nem a liberdade
de imprensa, nem a liberdade de culto e nem a liberdade de reunião. Como
acontece com todos os grupos sociais, é preciso estar diante de limites. A
distorção é quando, sob a alegação de direitos, se estabelece abusos.
PERGUNTA – Acredita que é simples identificar esse tipo de abuso?
Se a gente coloca essa discussão num contexto eleitoral, já
existem restrições legais a isso. Mas a gente sabe que uma coisa é a lei
vigente e outra coisa é a lei aplicada.
Na eleição do Crivella (Marcelo Crivella, prefeito do Rio de
Janeiro), algumas igrejas foram autuadas por estar servindo como uma espécie de
comitê de partido. Não estamos falando só do pastor no púlpito orientando o
rebanho sobre como deve votar. Estamos falando de reuniões que explicavam como
vai ser nas ruas a distribuição de panfletos, de material de campanha
encontrado em espaço religioso. Vários abusos cometidos.
Há situações em que templos são fechados, o Ministério
Público atuou assim em todo o Brasil nas últimas eleições, já temos como
tipificar esses abusos eleitorais.
PERGUNTA – E fora do contexto eleitoral?
Há formas de burlar a lei eleitoral e também formas de
burlar o que eu chamo de bom senso religioso. Por exemplo: eu tenho um grupo
que está ali por uma motivação religiosa e eu não vou supor que todo mundo tem
as mesmas necessidades sociais, econômicas, a mesma formação, o mesmo gosto e
até opinião política. Se eu, na condição de líder, tenho uma posição e imponho
como divina, isso seria uma manipulação, um abuso.
Por mais que possa existir resistência, reações e até
oposições nesse espaço religioso, o fato é que a gente não ignora que os caras
dispõem de mecanismo de comunicação múltiplos, inclusive o constrangimento
religioso. A pessoa que está ali proferindo a palavra divina, com a Bíblia na
mão, tem sobre ele todo um ambiente que propicia a ele uma autoridade.
É o que a gente caracteriza como abuso do discurso
religioso.
Essas formas de manipulação, então, nem sempre são muito
claras.
Quer ver como o negócio se dá? Por exemplo, a Justiça está
atrás de Bolsonaro. Aí eu proclamo um jejum pelas autoridades do governo. Isso
tem a conotação de cobertura espiritual sobre o Messias que está sendo
perseguido. Nem preciso falar o nome da pessoa, mas está subentendido quem eu
estou blindando, quem eu estou protegendo.
Na semana seguinte, alguém pode estar muito vigiado,
investigado. Aí, dessa vez eu clamo por justiça, contra a corrupção. Mais uma
vez eu não disse o nome, mas eu vou orar ou jejuar.
Dependendo da semana e da pauta política eu vou jejuar, eu
vou orar. Como eu, intérprete da lei, vou julgar isso como crime ou abuso de
poder? Nesses casos, é quase impossível.
Mas na maioria das vezes as pessoas não têm esse requinte, o
negócio é avacalhado.
PERGUNTA – Acha que haverá apoio político para que essa proposta de Fachin tenha sucesso?
Existe a noção de que a população evangélica tem peso
importante no cálculo eleitoral. Imagine, quem é que vai querer enfrentar isso?
Na disputa política, quem vai bancar o discurso de que tem abuso? A não ser que
o Supremo banque.
Se isso acontecer, os evangélicos vão reforçar aquele
argumento: “Se vocês não votarem na gente, eles vão nos perseguir”. Já existe
esse discurso eleitoral, foi esse discurso que levou multidões (de evangélicos)
a disputar o Parlamento em 1988, na Constituinte. Foi ali que surgiu o fenômeno
da bancada evangélica nos moldes que conhecemos hoje.
Antes eles diziam que política é coisa do diabo. Como
passaram a dizer que política é de Deus? Espalhou-se que a CNBB ia querer
colocar leis para persegui-los ou que inibiriam o crescimento dos evangélicos.
Isso está documentado, não é achismo. O discurso era: ou a gente tem os nossos
deputados lá para defender os interesses da igreja ou vamos sofrer perseguição.
Esse clima de terror teve capilaridade eleitoral.
Com base nisso é que pergunto quem vai bancar esse discurso
a favor da punição do abuso do poder religioso.
Fonte: UOL – Coluna de Chico Alves