Donald Trump Jr. e a médica Stella Immanuel, banidos da rede por defender o uso da cloroquina. (Foto: Reprodução/montagem)
Vejam se existe uma diferença entre as seguintes
declarações:
“No meio de uma crise, estou lutando por um tratamento
amplamente apoiado em dados que, por razões completamente opostas ao
entendimento da ciência, foi escanteado. Por causa disso, dezenas de milhares
de pacientes com Covid-19 estão morrendo desnecessariamente. Estou me
referindo, claro, ao medicamento hidroxicloroquina”.
“Nos últimos meses, depois de tratarmos de mais de 350
pacientes, não perdemos nenhum. Nem um diabético, nem alguém com pressão alta,
nem alguém com asma, nem um idoso. Não perdemos nenhum paciente. A
hidroxicloroquina com Azitromax e zinco funciona”.
Dois médicos disseram isso. Ambos foram igualmente
polêmicos.
O primeiro é Harvey Rich, professor de epidemiologia na
faculdade de saúde pública de Yale. Seu artigo na revista Newsweek passou quase
despercebido. A segunda declaração foi feita por Stella Immanuel, médica
proveniente de Camarões que estudou na Nigéria e trabalha em Houston, no Texas.
Como pastora de uma igreja que fundou, ela falou em tom
apaixonado em defesa do medicamento. Foi banida do Twitter, Facebook e YouTube
depois de 17 milhões de visualizações, tendo sido retuitada pelo presidente
norte-americano Donald Trump e seu filho Donald Trump Jr, este suspenso por um
pequeno intervalo.
A suspensão de Trump Jr. veio com o aviso sobre o motivo do
castigo: “Determinamos que esta conta viola as Regras do Twitter.
Especificamente, por violar a política relacionada com a divulgação de
informação enganosa e potencialmente perigosa em relação à Covid-19”.
As redes sociais realmente pululam com teorias
conspiratórias que, quanto mais absurdas, mais adeptos conseguem. Mas desprezo,
descrédito e ridicularização foram reservados apenas a Stella Immanuel. No New
York Times, ela foi tratada por “uma mulher que se identifica como a doutora
Stella Immanuel”. Os outros médicos, reunidos por políticos conservadores para
falar em frente à Suprema Corte, foram descritos assim: “Um grupo de pessoas
que se denominam ‘Médicos na Linha de Frente da América’ e usando jalecos
brancos”.
Além de desmerecer os participantes, o jornal também leu
suas mentes, dizendo que participaram de “um vídeo planejado especificamente
para apelar aos conspiracionistas da internet e conservadores ansiosos por
reabrir a economia, com cenário e personagens para emprestar credibilidade”.
O Times foi até brando comparado ao tratamento que o site
Daily Beast reservou a Stella Immanuel. “Sexo com espíritos” e “esperma
diabólico” foram as expressões usadas para ridicularizar os sermões que ela faz
como pastora, atribuindo doenças ginecológicas e disfunções sexuais a espíritos
malignos que atormentam infelizes durante o sono – os íncubus e súcubus dos
antigos tempos da Igreja católica.
Se tivesse identidade ideológica desses veículos de
comunicação, a médica poderia ser vista até como uma folclórica adepta da tese
mostrada por Roman Polanski no filme O Bebê de Rosemary. Ou uma africana ligada
em crenças ancestrais. Mas será que ela seria tratada como maluca se aparecesse
jogando coquetéis molotov numa manifestação do Black Lives Matter?
Todo mundo sabe a resposta.
Médicos também têm suas paixões políticas, divergem sobre
tratamentos e conhecem bem o histórico de curas miraculosas para enganar os
desesperados.
Stella Immanuel fez declarações contestáveis, inclusive
sobre a desnecessidade de usar máscaras e o uso profilático da
hidroxicloroquina. Disse que conhece bem o medicamento desde o tempo em que
atendia pacientes com malária na África e que o medo de complicações cardíacas
é desproporcional.
O professor de Yale falou basicamente a mesma coisa,
inclusive sobre o uso inadequado em estudos sobre a eficácia ou não do remédio.
E cravou o cerne do problema: “O medicamento se tornou altamente politizado.
Para muitos, é visto como um marcador de identificação política, dos dois lados
do espectro político. Ninguém precisa me dizer que não é assim que a medicina
deveria se comportar. Precisamos julgar esse medicamente estritamente com base
na ciência”. Exatamente o que parece cada vez mais difícil.
A hidroxicloroquina já foi condenada em estudos sérios ou
nem tanto – um deles totalmente feito com uma base de dados falsificada. Outros
ainda persistem em analisar cientificamente seus efeitos. Existe também a
hipótese de que funcione para determinados pacientes e não para outros, por
motivos que ainda têm que ser decifrados.
O novo coronavírus tem apenas seis meses de vida detectada
entre humanos. Descobertas que parecem ridículas são baseadas em dados reais:
pode ser mais perigoso para pessoas com sangue tipo A e contamina mais
facilmente os que têm acima de 1,80 metro de altura.
Em outro plano, ele também pode reeleger ou arruinar
presidentes. Aí está, obviamente, o campo de contaminação da medicina pela
política.
Fonte: Revista Veja