O princípio constitucional do devido processo legal (CF, artigo 5º, LIV) tem por objetivo assegurar o julgamento sereno, imparcial, e atento às provas lícitas e objetivas, estatuindo que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” [1]. Implementado originalmente na Inglaterra pela Magna Charta Libertatum, no ano de 1215, por King John Lackland, o due process of law pretendeu garantir o direito de não privação da liberdade e do patrimônio, sem a garantia de um processo desenvolvido na forma estabelecida pela lei.
No âmbito processual penal, garante a ampla defesa técnica e pessoal, com o direito de ser ouvido e informado de todos os atos processuais, acesso a defensor qualificado, manifestar-se após a acusação, publicidade e motivação das decisões, julgamento pelo juiz natural, duplo grau de jurisdição, revisão criminal e imutabilidade das decisões favoráveis transitadas em julgado.
O processo penal tem como um de seus princípios informadores a verdade real, traduzida na busca pela realidade efetiva dos fatos, de modo que o tema referente à instrução probatória se torna o mais importante de toda a ciência processual, já que as provas constituem os olhos do processo, o alicerce sobre o qual se ergue toda a dialética processual.
Segundo Eugênio Pacelli [2], a procura pela “verdade real” instituiu no Brasil, no decorrer do tempo, várias práticas probatórias. Diversas são as provas admitidas no processo penal e, além disso, a sua previsão legal (CPP, artigos 158 a 250) não é exaustiva, sendo admitidas também as chamadas provas inominadas, ou seja, aquelas não previstas expressamente na legislação.
O artigo 201 do CPP prevê o depoimento do ofendido como um dos meios de prova, dispondo que “sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações”.
O processo penal clássico não atribuía à vítima a necessária relevância, alijando-a do ponto central da controvérsia jurídica e, por conseguinte, da prestação jurisdicional, como se a matéria de ordem pública correspondente à grave violação de bens jurídicos fundamentais, pudesse obnubilar a atenção do Estado aos danos suportados diretamente pelo sujeito passivo efetivo da ação delituosa.
Nos crimes patrimoniais, na lesão corporal e no homicídio, nos crimes de violência sexual e em tantos outros, a persecução penal sempre se voltou à satisfação da pretensão punitiva, sem cuidar dos interesses patrimoniais do ofendido ou seus sucessores. Como consequência imediata dessa visão exclusivamente publicista, a desconsideração da vítima como colaboradora eficaz do esclarecimento dos fatos passou a ser regra, até por ela não responder por falso testemunho. Como presumivelmente interessada em obter satisfação moral ou vingança pela agressão sofrida, sua palavra sofreu excessiva relativização na análise do compêndio probatório.
Com o passar do tempo e a implementação do Estado democrático de Direito pela CF de 1988, tornou-se necessário rever o tratamento conferido à palavra da vítima e superar ideologias ultrapassadas, fazendo com que grupos anteriormente oprimidos, especialmente mulheres e menores, passassem a se colocar de forma mais ativa na defesa de seus direitos, ocasionando maior efetividade na apuração de delitos que antes não eram denunciados por medo ou vergonha, notadamente aqueles qui clam comittit solent, quais sejam, delitos cometidos na clandestinidade, longe da presença de testemunhas.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que nos crimes contra a dignidade sexual, bem como nos praticados em ambiente doméstico e familiar a palavra da vítima possui especial relevância, notadamente quando corroborada por outros elementos probatórios acostados aos autos.
Ao julgar o AgRg no AREsp 1211243-CE, o relator Jorge Mussi bem asseverou que “este Sodalício há muito firmou jurisprudência no sentido de que, nos crimes contra a dignidade sexual, geralmente ocorridos na clandestinidade, a palavra da vítima adquire especial importância para o convencimento do magistrado acerca dos fatos. Assim, a palavra da vítima mostra-se suficiente para amparar um decreto condenatório por delito contra a dignidade sexual, desde que harmônica e coerente com os demais elementos de prova carreados aos autos e não identificado, no caso concreto, o propósito de prejudicar o acusado com a falsa imputação de crime” [3]. No mesmo sentido: “O STJ tem decidido que as declarações da vítima, apoiadas nos demais elementos dos autos, em se tratando de crimes cometidos sem a presença de outras pessoas, é prova válida para a condenação, mesmo ante a palavra divergente do réu” [4].
Na mesma linha, a doutrina de Tourinho Filho: “Em certos casos é relevantíssima a palavra da vítima do crime. Assim, naqueles delitos clandestinos — qui clam comittit solent — que se cometem longe dos olhares de testemunhas —, a palavra da vítima é de valor extraordinário” [5]
De igual modo, o ministro do STJ Nefi Cordeiro, ao julgar caso envolvendo crime praticado no âmbito doméstico: “É firme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que, em crimes praticados no âmbito doméstico, a palavra da vítima possui especial relevância, uma vez que, em sua maioria, são praticados de modo clandestino, não podendo ser desconsiderada, notadamente quando corroborada por outros elementos probatórios” [6] e “a palavra da vítima tem especial relevância para fundamentar a condenação pelo crime de ameaça, mormente porque se trata de violência doméstica ou familiar” [7].
A esse panorama soma-se o fato de a pandemia da Covid-19 ter ensejado um aumento exponencial dos casos envolvendo violência doméstica e familiar, a ponto de o chefe da ONU, António Guterres, pedir que os países adotassem medidas para combatê-los. Guterres instou todos os governos a fazer da prevenção e da reparação da violência contra as mulheres uma parte essencial de seus planos nacionais de resposta à Covid-19, e destacou ações que podem ser tomadas para melhorar a situação [8].
É certo que a palavra da vítima não tem caráter absoluto, sendo necessária sua confirmação por outros elementos de prova disponíveis. Do mesmo modo, relevante indagar os precedentes da relação da vítima com o suposto agressor, por meio de depoimentos de vizinhos, parentes, amigos, entre outros, os antecedentes criminais do acusado e demais meios que possam servir de interpretação capaz de conduzir ao resultado útil do processo, aferindo-se a veracidade acerca do conteúdo das imputações, as quais podem corresponder à realidade ou relatos falsos derivados de reprovável sentimento de vingança.
Seguindo a linha da necessidade de repressão aos crimes “clandestinos”, a Lei 14.069/2020, inspirada no cadastro norte americano criado a partir das Leis de Megan [9], criou o cadastro nacional de pessoas condenadas por estupro, bem como a Lei 13.827/2019, que acrescentou à Lei Maria da Penha (Lei 11.34/2006) a necessidade de registro das medidas protetivas de urgência em banco de dados mantido pelo CNJ. Tramita também no Congresso Nacional o Projeto de Lei 1320/2019, que visa a criar cadastro para os agressores de mulheres.
Mesmo com o entendimento pacificado pelo superior tribunal, a temática da valoração da palavra da vítima ainda é delicada. O julgador deve proceder com a devida cautela na hora de proferir o édito condenatório com base no valor atribuído à palavra da vítima, a qual, a despeito de principal interessada no desfecho do processo, pode também ter sua motivação deturpada pela satisfação de um sentimento pessoal, como vingança (síndrome da mulher de Potifar [10]) ou a execração pública da imagem daquele que será acusado, ocasionando injustiças cujos danos são irreparáveis. Necessárias a experiência e a sabedoria do julgador para analisar com serenidade as provas e buscar a verdade.
Separar a vítima que quer justiça, mesmo diante da ausência de testemunhas, do falsário oportunista que pretende apenas prejudicar um inocente ou negociar favores imerecidos da Justiça, é tarefa para o magistrado experiente e sereno, que atenta mais às provas objetivas dos autos do que ao strepitus imprudente do clamor popular.
[1] CF, artigo 5º, LIV.
[2] PACELLI, Eugênio, Curso de Processo Penal, 21º ed. São Paulo: Atlas, 2017.
[3] AgRg no AREsp: 1211243-CE 2017/0311378-6, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 24/04/2018, QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/05/2018.
[4] AgRg no AREsp: 608342 PI 2014/0278365-2, Relator: Ministro WALTER DE ALMEIDA GUILHERME (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), Data de Julgamento: 03/02/2015, QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/02/2015.
[5] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal comentado, São Paulo: Saraiva, 2005, 9ª. ed. 2005, p. 296.
[6] AgRg no AREsp: 1003623 MS 2016/0278369-7, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 01/03/2018, SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/03/2018.
[7] AgRg no AREsp: 423707 RJ 2013/0367770-5, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 07/10/2014, SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 21/10/2014.
[8] Disponível em https://brasil.un.org/pt-br/85450-chefe-da-onu-alerta-para-aumento-da-violencia-domestica-em-meio-pandemia-do-coronavirus. Acessado em 07/09/2021.
[9] O nome foi dado em homenagem a Megan Kanka, uma garota de 7 anos que foi violada e morta em 1994, em Nova Jersey.
[10] Definida para a criminologia como a conduta de acusação falsa de crimes sexuais. Inspirada na narrativa bíblica, na qual Potifar, prende José baseado exclusivamente na palavra de sua mulher que, após diversas tentativas frustradas de manter relações sexuais com José, acusa-o de estupro.
Fernando Capez é procurador de Justiça, mestre e doutor em Direito e presidente do Procon-SP.