“’Deus Cuida de Mim’ me levou para mais perto da realidade evangélica brasileira – o que me coloca mais fundo dentro do Brasil,” disse Caetano sobre gravação com artista gospel Kleber Lucas.
Este mês acontece o lançamento do louvor “Deus Cuida de Mim”, um dos maiores hits da música cristã brasileira de todos os tempos, com participação de Caetano Veloso. O anúncio talvez cause estranhamento, com fãs se perguntando por qual caminho Caetano chegou ao gospel. Mas a gravação é histórica e apresentará esse gênero, o segundo mais popular no Brasil, a ouvintes que, em outras circunstâncias, provavelmente rejeitariam uma canção rotulada como cristã.
Caetano e Kleber Lucas se encontraram nos meses finais da eleição deste ano para gravar o jingle “Vou pedir pra você votar”, como parte da campanha de Lula para presidente. “Achei-o maravilhoso,” disse Caetano sobre Lucas, “e a peça saiu a mais linda e animadora de toda a campanha“.
Caetano ouviu “Deus Cuida de Mim” pela primeira vez nesse encontro. “Achei bonita e comovente. Gravamos e ficamos emocionados com o resultado. Isso me levou para mais perto da realidade evangélica brasileira – o que me coloca mais fundo dentro do Brasil… Chorei, como Kleber e muitas outras pessoas que ouviram nossa gravação, ao ouvi-la”.
Esse encontro com a música gospel aconteceu independentemente da ação de serviços de inteligências artificial. “Os algoritmos que me perseguem nunca me levaram para o gospel brasileiro,” escreveu. “Fui e sou fã de Mahalia Jackson desde o fim da adolescência. Mas, embora sabia que há cantores evangélicos no Brasil, nunca procurei ouvi-los. Não que não tenha ouvido nada, mas até aqui não aconteceu de eu ouvir alguém cantando gospel no Brasil e eu me sentir atraído pelo seu estilo”.
Kleber Lucas foi o artista gospel mais famoso a fazer campanha contra a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Ele é um “evangélicos raiz” que é influente, conhecido como artista por várias gerações de fãs, e fala a língua de milhões de cristãos pobres. Seu nome circulou nos cadernos de política da imprensa nacional quando foi anunciado, na semana da votação do primeiro turno, o lançamento da faixa “Messias”, que denuncia o sequestro das igrejas evangélicas pelo bolsonarismo. Por causa do posicionamento político, a agenda de apresentações dele foi quase totalmente cancelada.
Caetano não é alheio ao tema do cristianismo evangélico enquanto fenômeno social associado a assuntos como racismo e desigualdade. Dados de 2019 do DataFolha indicam que a “cara” do evangélico brasileiro é preta, pobre, periférica e predominantemente feminina. Perguntei a ele por quais motivos o pentecostalismo se tornou a religião mais preta do Brasil.
“Me pergunto se não se trata de um passo tardio dos países periféricos latinos das Américas (mas não só, já que vi na Coréia do Sul fenômeno semelhante) na direção da modernidade. Também me pergunto em que medida o fenômeno é parte do imperialismo norte-americano, anglófono, ou da força histórica das culturas do Atlântico Norte. Me fascina a história de Seymour e da rua Azuza [berço do pentecostalismo]”.
“Deus Cuida de Mim” estreou em 1999 e faz parte do repertório semanal cantado em milhares de igrejas evangélicas do país.
A versão nova chega ao público em seguida a uma eleição tensa e agressiva, marcada pela desinformação e pela intolerância, pelo debate sobre religião e moralidade, que deixou o país nas trincheiras. Como ela será recebida? É possível que ela ajude a sociedade a cicatrizar?
Ao saber do lançamento da “Deus Cuida de Mim” com a participação de Caetano, uma amiga, que é antropóloga e evangélica, me escreveu: “Agora ele bagunçou todas as fronteiras simbólicas da esquerda”.
Um amigo – também evangélico e antropólogo – notou, ao escutar a versão nova, que o resultado ficou fiel à própria canção, ao gênero, e também ao estilo de cantar e ao repertório de Caetano. Ela é semelhante, na origem popular, a “Sozinho”. Considerada brega por ouvintes mais escolarizados, “Sozinho” se tornou uma das faixas mais ouvidas (mais de 53 milhões de vezes) entre as gravações de Caetano no Spotify.
Será interessante ver como evangélicos e não-evangélicos reagirão a essa gravação.
Por Juliano Spyer, antropólogo, pesquisador do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatório Evangélico.
Assessoria de Imprensa – Sony Music