Representantes de igrejas brasileiras se reuniram em Genebra
para traçar uma estratégia para lidar com situação no País. (Jamil Chade/UOL)
Uma versão fundamentalista do cristianismo está legitimando
medidas do governo Bolsonaro que vão justamente contra as bases da religião —
entre elas a discriminação, violação aos direitos humanos e mesmo a proteção do
planeta.
O alerta está sendo feito por parte das igrejas nacionais
que, alarmadas com a situação no país, se reuniram na Suíça para debater o
cenário religioso no Brasil e pedir a ajuda do Conselho Mundial de Igrejas para
que uma estratégia seja estabelecida.
Nos anos 70, o Conselho Mundial de Igrejas foi fundamental
para bancar as ações de religiosos no Brasil que lutavam contra a ditadura.
Entre as várias iniciativas, o grupo financiou os trabalhos da coleta de dados
de vítimas e torturadores, que acabaria sendo conhecida como “Brasil: Nunca
Mais”.
Agora, a organização ecumênica considera que a situação de
direitos humanos no Brasil voltou a ser problemática, principalmente quando há
uma utilização da religião para legitimar a retirada de direitos.
Entre uma parcela das igrejas brasileiras, a constatação é
de que, sozinhas, não terão a capacidade de se organizar para fazer frente às
tendências políticas atuais. Portanto, pedem a ajuda das igrejas de todo o
mundo.
Em sua maioria, os participantes do encontro foram de
igrejas protestantes, mas a reunião também contou com um representante da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Direita cristã organizada – Ao UOL, a reverenda Romi Bencke, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), foi categórica. “Estamos no momento de uma ruptura democrática”, disse. “Nosso grande desafio é o fundamentalismo cristão. O que é o cristianismo brasileiro hoje. Há uma tendência sempre de achar que o fundamentalismo é apenas ligado aos neopentecostais. Mas na verdade, isso está em todas as igrejas”, disse. “Há uma direita cristã organizada e os temas morais são os que mais impactam. É uma agenda anti-feminista, anti-LGBT, racista e tudo afirmado com valores e discursos cristãos.”
Seu conselho reúne hoje a Aliança de Batistas do Brasil,
Igreja Católica Apostólica Romana, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Igreja Presbiteriana Unida e Igreja
Síria Ortodoxa de Antioquia.
A religiosa brasileira, que participou do encontro, constata
ainda que há “um sequestro do que é a mensagem religiosa cristã”. “Por outro
lado, precisamos reconhecer que o cristianismo sempre se intitulou como sendo
uma religião hegemônica no Brasil. E isso teve um impacto para os povos
indígenas e outros. Hoje, vemos que a violência contra a mulher é legitimada
por discursos cristão e patriarcal”, alertou.
Romi conta como sua organização tem se aproximado de
movimentos feministas para ajuda-los a rebater o discurso fundamentalismo
cristão. “Elas estão sedo atacadas por uma leitura fundamentalista da Bíblia.
Queremos ajudar também no discurso religioso. Elas precisam ter os instrumentos
para rebater”, disse.
Num recente protesto, representantes de seu conselho foram
vestidas com camisetas que diziam “terrivelmente evangélica feminista”.
Cristianismo e crime organizado – Segundo Romi, o encontro em Genebra no Conselho Mundial de Igrejas era algo que os religiosos brasileiros pediam há meses. “Sozinhos não damos conta”, declarou. Uma das formas de participação do Conselho Mundial poderia ser por meio do diálogo lançado no Brasil pela Comissão Arns, relativa aos direitos humanos. “Esperamos que o Conselho possa se somar e referir sobre estratégias para enfrentar a relação entre cristianismo e milícias, entre cristianismo e crime organizado. Isso tudo está crescendo. E se continuar, teremos uma descaracterização absurda do cristianismo”, alertou.
Brasil volta a preocupar após 40 anos – O reverendo Olav Fykse Tveit, secretário-geral do Conselho Mundial de Igrejas, aceitou a realização do encontro diante do cenário brasileiro atual. “Há elementos religiosos que nos preocupam”, disse. Fazendo eco às igrejas brasileiras, Tveit indicou que teme a legitimação de atos de discriminação, usando justamente símbolos e valores cristãos.
Ele ainda lembrou como, mais de 40 anos depois de sua
entidade ter agido nos bastidores no Brasil, o país volta a viver uma crise.
“Estamos de novo preocupados com o Brasil”, disse. “É importante apoiar grupos
protestantes e vozes que lutam pela Justiça e paz no Brasil”, insistiu.
Mas ele também destacou a necessidade de tocar na questão da
floresta amazônica, outra preocupação das igrejas e que será alvo de um sínodo
no Vaticano, em outubro. “Será uma catástrofe ecológica se estes pulmões de
toda a Criação forem queimados ou destruídos”, disse.
“É uma catástrofe profundamente política, moral e espiritual
se for feita por seres humanos e tudo o que for necessário para a impedir não
for feito. Podemos e temos de trabalhar em conjunto para proteger a nossa casa
comum”, declarou Tveit.
Família “foi colocada como desculpa” – O reverendo Agnaldo Gomes também constata os desafios dos grupos religiosos. “Como igreja, precisamos primeiro pedir perdão por nossa omissão durante tanto tempo”, declarou o presidente da Aliança das Igrejas Presbiterianas e Reformadas da América Latina (AIPRAL). “E sobre o silêncio dos que não tiveram a coragem de se expressar claramente. Estão se apequenando. Precisamos fazer o evangelho ser ouvido”, disse.
Segundo ele, o caminho terá de ser o do diálogo, inclusive
com não-cristãos. “No Brasil, estamos tentando entender o que acontece”, disse.
“De fato, estamos num caldeirão em efervescência e talvez não estejamos temos
clareza da dimensão de tudo que está ocorrendo”, afirmou.
Assim como outros participantes do encontro, seu temor é o
de se legitimar, com a igreja, comportamentos discriminatórios.
Segundo ele, a defesa da família foi colocada “como a grande
desculpa”, inclusive na campanha eleitoral. “Mas isso é apenas a fachada. O que
se tem é a retirada de direitos”, alertou. “Os evangélicos estão sendo usados
como margem de manobra”, completou.
Repercussão no Brasil – O reverendo Welerson Alves Duarte,
presidente da Assembleia Geral da Igreja Presbiteriana Conservadora do Brasil,
discorda com as colocações levadas à Genebra. Para ele é importante entender
com profundidade o que as pessoas entendem hoje por fundamentalismo, pois “o
conceito está distorcido”. “Nós usamos para caracterizar aqueles que têm suas
práticas fundamentadas na Bíblia, independentemente do que diz a política”,
diz.
Para exemplificar, o pastor utiliza as pautas LGBTs, que
estavam no centro da discussão na reunião com o CMI. “A concepção que nós vemos
na bíblia é que família é a união entre homens e mulheres. A prática
homossexual não é correta, não é que a Deus criou originalmente, mas nem por
isso vamos discriminar o homossexual”, diz. “As pessoas deturpam o conceito
para nos chamarmos de homofóbicos, e eu não sou. Tenho boas relações com
pessoas que são”, diz, mas faz a ressalva de que um homosexual não poderia se
tornar membro da sua congregação.
Também debatido entre ministros presentes na reunião, a
ideia de que a mistura entre a religião e a política é uma má ideia, reverbera
no Pastor Edmilson Vila Nova, presidente da Convenção Batista Nacional. “Ao
longo da história vemos que todas as vezes que a igreja se alinhou com o poder
político isso foi muito danoso. Isso é danoso para igreja e para a sociedade. A
fé cristã não se dá por atos políticos.”
As igrejas batistas protestantes são popularmente conhecidas
por serem uma denominação mais liberal em relação às demais denominações
evangélicas. Nesse sentido, o pastor acredita que o momento em que o Brasil
vive é muito mais “liberal do que fundamentalista”, e que as pautas
relacionadas aos direitos humanos “não estão sendo banalizadas” pela igreja.
“As pessoas devem ser respeitadas independentemente da religião, da cor ou da
opção sexual, e todos devem ser livres para emitir opiniões, inclusive
igrejas”, diz, para elucidar que condenar a práticas LGBTs e pautas feministas
como o aborto é “condenar o pecado, e não o indivíduo”.
A separação entre o Estado e a Igreja, é tema também
defendido pelo pastor Joel Müller, presidente interino da Igreja Evangélica
Luterana no Brasil. Por outro lado, o pastor participou do encontro com a
Frente Parlamentar Evangélica em Brasília no último dia 8. A reunião, liderada
pelo deputado Silas Câmara, terminou em um encontro com o presidente Jair
Bolsonaro, acompanhado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e da Casa
Civil, Onyx Lorenzoni.
Ele reverbera que o fundamentalismo é danoso, por impor o
“tradicionalismo de forma preconceituosa e a imposição da fé da Igreja ao
Estado”. “Usar a religião para violar direitos humanos é um equívoco, a menos
que haja deturpação das Escrituras Sagradas”, diz. Mas pondera.”A Bíblia não
nos autoriza o racismo, sexismo ou outra forma de preconceito, mas não pode ser
usado como manual de sociologia, pois se trata da Revelação de Deus e da sua
obra de criação e salvação da humanidade, essencialmente no relacionamento
deste Deus criado com o seu povo”, conclui.
*Fonte: UOL