Os detidos participam de uma aula em um centro de “treinamento em educação” estabelecido pelo governo chinês na região de Xinjiang. (Foto: Reprodução)
CHINA – Um vazamento em massa de documentos trouxe à luz,
pela primeira vez, o sistema de lavagem cerebral da China contra centenas de
milhares de muçulmanos em uma rede de campos de detenção de alta segurança.
O governo chinês, em resposta, diz reiteradamente que os
campos na região de Xinjiang, no noroeste do país, oferecem educação voluntária
e treinamentos para conter o extremismo. O embaixador chinês nos Estados Unidos
classificou as revelações de “fake news”.
Mas os documentos oficiais, analisados pelo programa BBC
Panorama, mostram como os detidos são trancafiados, doutrinados e castigados.
O vazamento foi feito ao Consórcio Internacional de
Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês), que atuou com 17
veículos parceiros, incluindo a BBC e os jornais Le Monde, The New York Times,
El País e The Guardian.
A investigação conjunta encontrou novas evidências que
refutam as alegações da China sobre os campos de detenção, que foram
construídos na região de Xinjiang, que faz fronteira com Índia, Mongólia,
Quirguistão, Tadjiquistão, Cazaquistão e Rússia, entre outros países, nos
últimos três anos.
Quase 1 milhão de pessoas, a maioria da comunidade muçulmana
uigur, foram detidas sem direito a julgamento.
Entre os documentos vazados está um memorando de nove
páginas enviado em 2017 por Zhu Hailun, secretário-adjunto do Partido Comunista
em Xinjiang e mais alto oficial na região, para os responsáveis pelos campos de
detenção.
As instruções da autoridade chinesa deixam claro que as
instalações devem ser tratadas como prisões de segurança máxima, com disciplina
rígida, punições e controle estrito contra fugas.
O documento inclui determinações como:
“Não permitir fugas nunca”
“Ampliar disciplinamento e punição contra violações de
comportamento”
“Promover confissões”
“Fazer dos estudos de mandarim a prioridade máxima”
“Encorajar estudantes para transformação de fato”
“Garantir completude da vigilância por vídeo de dormitórios
e salas de aula a fim de evitar pontos cegos”
Os documentos revelam como cada aspecto da vida do preso é
monitorado e controlado: “Os estudantes precisam ter definidos a posição de sua
casa, seu lugar na fila, sua cadeira na sala de aula e sua estação de trabalho,
e é terminantemente proibida qualquer modificação”.
“A implementação de regras de comportamento e disciplina demanda
se levantar, responder a lista de chamada, se lavar, ir ao banheiro, organizar
e realizar tarefas domésticas, comer, estudar, dormir, fechar a porta etc.”
Outros documentos confirmam a escala extraordinária de
detenções. Um deles mostra que mais de 15 mil pessoas da região sul de Xinjiang
foram mandados para os campos de detenção no período de uma semana em 2017.
Sophie Richardson, diretora da Human Rights Watch para a
China, afirmou que os documentos vazados deveriam servir de base para ações
contra o país. “São evidências que documentam inaceitáveis violações de
direitos humanos”, afirma ela. “Acho que é justo descrever cada um dos detidos
como um sujeito submetido, no mínimo, a tortura psicológica, porque eles
literalmente não sabem quanto tempo ficarão ali.”
Um dos documentos detalha como os presos só conseguem ser
soltos dos campos de detenção quando demonstram que mudaram seus
comportamentos, crenças e língua. “(É preciso) promover a confissão dos
estudantes para que eles entendam profundamente a natureza criminosa, perigosa
e ilegal de suas atividades pregressas”, afirma o texto.
E completa: “Para aqueles que não compreendam, tenham
atitudes negativas ou até resistam, é preciso adotar a educação transformadora
para garantir que os resultados sejam alcançados”.
Ben Emmerson QC, advogado referência na área de direitos
humanos e conselheiro no Congresso Mundial Uigur, afirmou que os campos buscam
mudar a identidade das pessoas. “É muito difícil ver isso como qualquer outra
coisa que não seja um sistema de lavagem cerebral em massa dirigido para uma
comunidade étnica inteira. É uma transformação total que busca especificamente
varrer da Terra os muçulmanos uigures de Xinjiang como um grupo cultural
separado.”
Os campos de detenção da China – Os muçulmanos detidos
ganham pontos a favor pela “transformação ideológica, estudos, treinamento e
compromisso com a disciplina”, afirma um dos documentos que vieram à tona.
O sistema de punição e recompensa ajuda a determinar se os
detidos podem ter contato com familiares e quando eles serão soltos. A soltura,
aliás, depende que quatro comitês do Partido Comunista da China vejam
evidências de que a pessoa realmente se transformou.
Os documentos vazados mostram também como o governo chinês
usa vigilância em massa e um programa digital de policiamento preditivo que
analisa dados pessoais.
Um dos materiais analisados pelo BBC Panorama mostra como
esse sistema colocou um alerta sobre 1,8 milhão de pessoas simplesmente porque
elas instalaram o aplicativo de compartilhamento Zapya em seus celulares.
As autoridades determinaram então a investigação de 40.577
dessas pessoas, uma por uma. “Se não for possível afastar as suspeitas sobre a
pessoa”, ela deve ser enviada para “treinamento intensivo”, afirma o documento.
Um texto mostra também diretrizes explícitas para prender
uigures com cidadania estrangeira e para monitorar pessoas dessa etnia que
vivam no exterior, com participação da rede de embaixadas e consulados da China
ao redor do mundo.
O embaixador chinês no Reino Unido, Liu Xiaoming, afirmou
que essas medidas são adotadas para garantir a segurança da população e que não
houve um único ataque terrorista em Xinjiang nos últimos três anos. “A região
agora desfruta de estabilidade social e união entre os grupos étnicos. As
pessoas estão vivendo uma vida feliz com um senso muito mais forte de
completude e segurança.”
Para ele, “algumas pessoas no Ocidente, em total
discordância com os fatos, tem tentado caluniar e difamar violentamente a China
em relação ao que acontece em Xinjiang, numa tentativa de criar uma desculpa
para interferir nos assuntos internos da China, interromper os esforços
antiterroristas da China em Xinjiang e impedir o desenvolvimento constante da
China”.
Quem são os uigures? – Os uigures são muçulmanos que habitam
predominantemente a região autônoma de Xinjiang, com cerca de 22 milhões de
habitantes. Sua língua é parente do turco e os uigures se veem culturalmente e
etnicamente mais ligados à Ásia Central do que ao resto da China.
Por séculos, as principais atividades econômicas da região
vinham sendo a agricultura e o comércio, com cidades como Kahshgar prosperando
como entrepostos da famosa Rota da Seda.
No começo do século 20, eles chegaram a declarar
independência. Mas, em 1949, a região passou a ser controlada pela China
comunista.
A agricultura é a principal atividade econômica da região,
que é rica em minerais e petróleo. Ela recebeu uma quantidade considerável de
investimentos, e testemunhou, além de um rápido crescimento econômico, uma onda
de migração de colonos chineses da etnia han.
Há cerca de 10 milhões de uigures vivendo em Xinjiang, mas
eles deixaram de ser maioria na região com essa migração em massa da etnia han.
Os uigures têm constantemente reclamado que a distribuição
dos lucros desse crescimento é desigual. Em resposta a essas críticas, as
autoridades chinesas alegam que houve melhorias nas condições de vida dos
moradores da região.
Violência e vigilância – Nas últimas décadas, centenas de
pessoas morreram em levantes violentos, ataques entre comunidades e repressão
policial.
Em 2013, um carro ocupado por três uigures avançou contra
pedestres na praça Tiananmen, em Pequim, matando duas pessoas, além dos três
ocupantes do carro. O episódio foi classificado pelo governo como um grave ataque
terrorista, o primeiro do gênero na história recente de Pequim.
Ao longo dos últimos quatro anos, Xinjiang tem sido alvo de
algumas das medidas de segurança mais restritivas e abrangentes já implantadas
por um governo contra seu próprio povo.
Isso inclui uso de tecnologia em larga escala:
reconhecimento facial por câmeras, dispositivos capazes de monitorar e ler
conteúdos de celulares e coleta em massa de dados biométricos.
Estima-se que quase 1 milhão de pessoas tenham sido levadas
para campos de detenção na China – BBC
Nos últimos anos, os uigures passaram a conviver com
“verificações étnicas” em diversos pontos de checagem de pedestres e veículos,
enquanto moradores chineses da etnia han são frequentemente liberados sem
qualquer questionamento.
Eles também enfrentam severas restrições de viagem, tanto
dentro quanto fora de Xinjiang – um decreto força os residentes a entregar os
passaportes à polícia.
Novas e severas punições foram implantadas para restringir a
identidade e práticas islâmicas: foram proibidos, entre outras coisas, o uso de
longas barbas e lenços na cabeça, além de instrução religiosa a crianças e
nomes que soem como islâmicos.
Essas políticas parecem marcar uma mudança fundamental no
pensamento oficial: o separatismo da região não é apenas um problema isolado e
individual, mas sim algo inerente à cultura uigur e ao islã em geral.
Essa mudança coincide com um aperto proposto pelo atual
presidente do país, Xi Jinping, no qual a lealdade à família e à fé, pilares da
cultura uigur, deve ser subordinada ao Partido Comunista.
Um paralelo melhor pode ser encontrado dentro do próprio
passado totalitário da China. Como na Revolução Cultural, campanha do líder
comunista Mao Tsé-Tung contra “partidários do capitalismo” que deixou milhões
de mortos, uma sociedade está sendo informada de que precisa ser desmontada
para ser salva.
*Fonte: BBC News